Dúvidas profundas

“Foi nesse momento que comecei a sentir dúvidas profundas em relação a tudo que meu pai dizia. Quando ouvia seus sermões, pensava em minha própria experiência. Suas palavras eram insípidas e vazias, tal como as de uma história contada por alguém que nela não crê, ou que só a conhece por ouvir dizer.

(…)

Vivia em contato com a natureza, com a terra, com o sol, com a lua e com as intempéries, diante das criaturas vivas e principalmente da noite, dos sonhos e de tudo o que “Deus” evocava imediatamente em mim. Ponho a palavra “Deus” entre aspas, pois a natureza (eu inclusive) me parecia posta por Deus, como Não Deus, mas por Ele criada como uma Sua expressão. Não me convencia de que a semelhança com Deus se referisse apenas ao homem. As altas montanhas, os rios, os lagos, as belas árvores, as flores e os animais pareciam traduzir muito melhor a essência divina do que os homens com seus trajes ridículos, sua vulgaridade, estupidez e vaidade, sua dissimulação e seu insuportável amor-próprio.

O que digo agora em frases que se desenvolvem umas a partir das outras era, naquela época, incapaz de traduzir em frases articuladas: tudo não passava de pressentimento perturbador e de sentimento intenso. Quando me encontrava só, podia entrar nesse estado, sentindo-me, então, digno e verdadeiramente homem.

(…) O nº 2 é uma figura típica que só é sentida por poucas pessoas. A compreensão consciente da maioria não é suficiente para perceber sua existência.

Pouco a pouco a igreja tornou-se para mim uma fonte de suplício, pois nela se falava em voz alta — eu diria: quase sem pudor — de Deus, de Suas ações e intenções.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 1048-1097.

Anos de Colégio II

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