Uma transformação se esboçava

“Progressivamente uma transformação se esboçava em mim. Em 1916 senti um impulso incoercível de exprimir e formular o que de certa forma poderia ter sido dito por Filemon. Assim nasceram os Septem sermones ad mortuos, em sua linguagem tão peculiar. Tudo começou por uma espécie de inquietação, sem que eu soubesse o que ela significava nem o que se pretendia de mim. Havia uma atmosfera singularmente pesada em torno, como se o ar estivesse cheio de entidades fantasmagóricas. Nossa casa parecia assombrada: à noite minha filha mais velha viu uma forma branca atravessar o quarto. Outra filha, sem qualquer influência da primeira, contou que durante a noite a coberta de sua cama fora arrancada duas vezes. Meu filho de nove anos teve um pesadelo. De manhã, pediu à mãe lápis de cor e, sem que nunca tivesse feito isto antes, reproduziu a imagem do sonho. Chamou-a “a imagem do pescador”: um rio atravessa no meio da figura e um pescador, com uma vara de pescar, acaba de fisgar um peixe. Na cabeça do pescador há uma chaminé, onde as chamas crepitam e de onde a fumaça sobe. O Diabo chega voando, vindo da outra margem. Protesta, reclamando que seus peixes estão sendo roubados. Sobre o pescador paira um anjo, que diz: “Não deves fazer-lhe mal algum, ele só pesca os maus peixes!” Esta figura foi desenhada por meu filho num sábado de manhã.

Domingo, às cinco horas da tarde, a campainha da porta de entrada tocou insistentemente. Era um dia claro de verão e as duas empregadas estavam na cozinha, de onde era possível ver o que se passava no espaço livre diante da porta. Eu estava relativamente perto da campainha, ouvi quando ela tocou e também pude ver o badalo em movimento. Imediatamente corremos à porta para ver quem era, mas não era ninguém! Nós nos entreolhamos, estupefatos! A atmosfera era terrivelmente opressiva. Percebi que algo ia acontecer. A casa parecia repleta de uma multidão, como se estivesse cheia de espíritos! Estavam por toda a parte, até mesmo debaixo da porta, mal se podia respirar. Naturalmente, uma pergunta ardia em mim: “Em nome do céu, o que quer isso dizer?” Houve então uma resposta uníssona e vibrante: “Nós voltamos de Jerusalém, onde não encontramos o que buscávamos.” Estas palavras correspondem às primeiras linhas dos Septem sermones ad mortuos.

As palavras puseram-se então a fluir espontaneamente e em três noites a coisa estava escrita. Mal eu começara a escrever, toda a coorte de espíritos desvaneceu-se. A — fantasmagoria terminara. A sala tornou-se tranquila, a atmosfera pura, até a noite do dia seguinte. A tensão voltou então menos intensa e tudo ocorreu da mesma forma. Isso foi em 1916. É preciso tomar essa experiência tal como foi ou parece ter sido. Provavelmente estava ligada ao estado emocional em que me encontrava e no curso do qual podem dar-se fenômenos parapsicológicos. Tratava-se de uma constelação, enquanto numen de um arquétipo: “Sinais se mostram, estão no ar!” Nosso intelecto naturalmente gostaria de fazer prevalecer quanto a esse fenômeno um tipo de conhecimento das ciências naturais, ou melhor, gostaria de aniquilar toda a experiência contrária à regra. Mas como seria monótono um mundo sem exceções à regra!

Pouco antes desse acontecimento eu anotara a fantasia de que minha alma saíra voando. Fora um episódio muito significativo para mim, pois a alma, a anima, cria coletividade dos mortos: o inconsciente corresponde ao mítico país dos mortos, o país dos antepassados. Assim, se numa fantasia a alma desaparece, isso quer dizer que ela se retirou para o inconsciente ou para o “país dos mortos” — o que equivale à chamada perda de alma, fenômeno relativamente frequente entre os primitivos. No “país dos mortos”, a alma suscita uma vivificação secreta e confere uma forma às marcas ancestrais, aos conteúdos coletivos do inconsciente. Da mesma forma que o médium, ela dá aos “mortos” a possibilidade de manifestar-se. Eis por que, logo depois da desaparição da alma, s “mortos” apareceram em minha casa, surgindo assim os Septem sermones ad mortuos.

Nessa época e depois, sempre com maior clareza, os mortos me apareceram como portadores das vozes do que ainda não tem resposta, do que ainda não tem solução e remissão. As questões às quais eu devia dar uma resposta, mediante meu destino, não me abordavam do exterior, mas provinham precisamente do mundo interior. Por isso, as conversações com os mortos, os Septem sermones constituem uma espécie de prelúdio àquilo que eu devia comunicar ao mundo acerca do inconsciente, uma espécie de esquema ordenador e uma interpretação dos conteúdos gerais do inconsciente.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 3519-3551.

Confronto com o inconsciente

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