— Calma, Francisco — pedia a companheira dos infortunados —, você vai libertar-se, ganhar muita serenidade e alegria, mas depende do seu esforço. FAÇA DE CONTA QUE A SUA MENTE É UMA ESPONJA EMBEBIDA EM VINAGRE. É NECESSÁRIO EXPELIR A SUBSTÂNCIA AZEDA. Ajudá-lo-ei a fazê-lo, mas o trabalho mais intenso cabe a você mesmo.
— Este fantasma diabólico! — acrescentava a chorar como criança, provocando compaixão.
— Confie em Jesus e esqueça o monstro — dizia a irmã dos infelizes, piedosamente. — Vamos ao passe. O fantasma fugirá de nós.
E aplicou-lhe fluidos salutares e reconfortadores, que Francisco agradeceu, manifestando imensa alegria no olhar.
— A quem se refere o doente? — indaguei impressionado. — Está, porventura, assediado por alguma sombra invisível ao meu olhar?
A velha servidora das Câmaras de Retificação
sorriu carinhosamente e falou:
— Trata-se do seu próprio cadáver.
— Que me diz? — tornei, espantado.
— O pobrezinho era excessivamente apegado
ao corpo físico e veio para a esfera espiritual após
um desastre, oriundo de pura imprudência.
Esteve, durante muitos dias, ao lado dos despojos, em pleno sepulcro, sem se conformar com situação diversa.
Queria firmemente levantar o corpo hirto, tal o império da ilusão em que vivera, e, nesse triste esforço, gastou muito tempo.
Amedrontava-se com a ideia de enfrentar o desconhecido
e não conseguia acumular nem mesmo alguns átomos de desapego às sensações físicas. Não valeram socorros das
esferas mais altas, porque fechava a zona mental a todo
pensamento relativo à vida eterna.
— Como pode a imagem
do cadáver persegui-lo?
— A visão de Francisco — esclareceu a velhinha, atenciosa — é o pesadelo de muitos Espíritos depois da morte carnal. Apegam-se demasiadamente ao corpo, não enxergam outra coisa, nem vivem senão dele e para ele, votando-lhe verdadeiro culto, e, vindo o sopro renovador, não o abandonam. Repelem quaisquer ideias de espiritualidade e lutam desesperadamente para conservá-lo. SURGEM, NO ENTANTO, OS VERMES VORAZES, E OS EXPULSAM. A ESSA ALTURA, HORRORIZAM-SE DO CORPO E ADOTAM NOVA ATITUDE EXTREMISTA.
A visão do cadáver, porém, como forte criação mental deles mesmos, atormenta-os no imo da alma. Sobrevêm perturbações e crises, mais ou menos longas, e muito sofrem até a eliminação integral do seu fantasma.
— Ah! como é profundo o sono espiritual da maioria de nossos irmãos na carne! Isto, porém, deve preocupar-nos, mas não deve ferir-nos.
A CRISÁLIDA COLA-SE À MATÉRIA INERTE, MAS A BORBOLETA ALÇARÁ O VOO; a semente é quase imperceptível e, no entanto, o carvalho será um gigante.
XAVIER, Francisco Cândido / André Luiz. Nosso Lar. 1. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1944. Edição Kindle.
CAPÍTULO 29 | A VISÃO DE FRANCISCO