“A dra. Jolande Jacobi, umas das colaboradoras de C.G. Jung, propôs que essa tarefa me fosse confiada. Todos nós sabíamos perfeitamente que não seria uma tarefa simples, pois era bastante conhecida a aversão de Jung de se expor e à sua vida aos olhos do mundo. Assim, depois de muita hesitação, resolveu conceder-me uma tarde por semana para abordarmos juntos esse trabalho. Isso foi um privilégio, dado seu intenso programa de trabalho e sua idade avançada.
Algum tempo depois dessa sua resolução, anotei as seguintes palavras de Jung: “Escrever um livro é sempre para mim uma confrontação com o destino. Existe no ato da criação alguma coisa de imprevisível que é de antemão impossível fixar nem prever. Assim, esta autobiografia já toma um rumo diferente daquele que eu a princípio imaginara. É por necessidade que escrevo minhas primeiras lembranças e um só dia de abstenção já me causa mal-estar físico. Assim que recomeço ele desaparece e meu espírito retorna à lucidez.”
A conversa ou o relato espontâneo têm um caráter de improvisação que determina o tom desta autobiografia. Em suas páginas, tanto a vida como a obra de Jung são apenas fugidiamente mencionadas. Mas o livro veicula a atmosfera de seu universo espiritual, revelando as vivências de um homem para o qual a alma sempre significou a realidade mais autêntica. Em vão interroguei Jung acerca de acontecimentos de sua vida exterior; só a essência espiritual do que vivemos era para ele inesquecível e digna de ser contada.
“O destino quer — como sempre quis — que na minha vida todo o exterior seja acidental e que só o interior represente algo de substancial e determinante. É assim que todas as lembranças de acontecimentos exteriores empalideceram; mas talvez nunca tenham representado algo de essencial, ou apenas o foram na medida em que o coincidiram com as fases do meu desenvolvimento interior.”
“Conversei com muitos homens famosos de meu tempo, com os grandes da ciência e política, com exploradores, artistas, escritores, príncipes e eminentes financistas, mas confesso sinceramente que poucos desses encontros representaram para mim um acontecimento marcante. Éramos como navios que se saudavam em alto-mar, cada qual baixando sua bandeira. Em sua maioria, essas pessoas tinham alguma solicitação a fazer-me, que não posso nem devo mencionar. Assim, embora sejam personalidades importantes aos olhos do mundo, não deixaram marcas na minha lembrança. Tais encontros não tiveram consequências profundas; foram desprovidos de uma verdadeira importância e empalideceram rapidamente.
(…)
Vários caminhos conduziram-no ao confronto com problemas religiosos:
Porque antes de tudo Jung sentia-se médico. Não lhe escapara o fato de que a atitude religiosa desempenha um papel decisivo no que diz respeito à terapêutica dos males da alma. Isto correspondia à sua descoberta de que a alma cria espontaneamente imagens de conteúdo religioso e que são, portanto, “de natureza religiosa”.
Apesar de sua fama mundial, os críticos de sua obra sempre o fizeram sentir assim. Ele aguentou tal oposição e nas linhas deste livro encontramos aqui e ali vestígios desse desapontamento ao constatar que suas ideias religiosas não foram totalmente compreendidas. Por mais de uma vez ele demonstrou sua decepção resmungando: “Na Idade Média eu teria sido queimado!”
“Acho que todos os meus pensamentos giram em torno de Deus como os planetas em torno do Sol, e são da mesma forma irresistivelmente atraídos por ele. Eu me sentiria como o maior pecador querer opor uma resistência a esta força”, escreveu ele em 1952 a um jovem sacerdote.
Em suas Memórias, Jung fala pela primeira e única vez de Deus e de suas próprias experiências religiosas. Recordando sua rebelião juvenil contra a Igreja, ele me disse certa vez: “Naquele tempo compreendi que Deus — pelo menos para mim — era uma das experiências mais imediatas.” Em suas obras científicas Jung nunca fala de Deus, mas da “imagem de Deus na alma humana”. Isto não constitui uma contradição: por um lado, sua afirmação é subjetiva, baseada numa vivência e, por outro, é uma constatação científica e objetiva. No primeiro caso é o homem religioso que fala, o homem cujos pensamentos são influenciados por sentimentos poderosos e apaixonados, por instituições e experiências interiores e exteriores de uma vida longa e fecunda. No segundo, é o cientista que toma a palavra, e suas afirmações não ultrapassam os limites do conhecimento científico, restringindo-se conscientemente a fatos demonstráveis.
(…)
Não sei se estarei suficientemente longe deste mundo para que as flechas não me atinjam e se poderei suportar as reações negativas a sua eventual publicação. Já sofri demasiadamente a incompreensão e o isolamento a que se é relegado quando se tenta dizer aquilo que os homens não compreendem. (…) Minha vida e minha obra são idênticas. (…) O que sou e o que escrevo são uma só coisa. Todas as minhas ideias e todos os meus esforços, eis o que sou. Assim, a “autobiografia” representa apenas o pequeno ponto que se põe sobre o i.
(…)
“Confesso que tal coisa está além do meu alcance. Seria impossível transpor numa forma abreviada o que tanto me custou expor em detalhe.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 239-374.
Introdução