Peregrinações oníricas

“Para apreender as fantasias, eu partia muitas vezes da representação de uma descida. Certa vez, fiz várias tentativas antes de penetrar nas profundidades. Na primeira vez, atingi, por assim dizer, uma profundidade de trezentos metros. Na seguinte já se tratava de uma profundidade cósmica. Parecia uma viagem à Lua ou uma descida no vácuo. Surgiu em primeiro lugar a imagem de uma cratera e senti como se estivesse no país dos mortos. Ao pé de um alto muro rochoso vi duas figuras: a de um homem idoso de barba branca e a de uma bela jovem. Reunindo toda a minha coragem, abordei-os como se fossem seres reais. Escutei com atenção o que me diziam. O homem idoso declarou que era Elias, e isso me abalou. Quanto à moça, desconcertou-me ainda mais dizendo que se chamava Salomé! Era cega. Que estranho casal: Salomé e Elias! Entretanto, Elias assegurou-me que ele e Salomé já estavam ligados por toda a eternidade e isso aumentou ao máximo a minha confusão. Vivia com eles uma serpente negra que manifestava uma evidente inclinação por mim. Preferi dirigir-me a Elias, porque se afigurava o mais razoável dos três, parecendo dispor de uma boa compreensão. Salomé inspirava-me desconfiança. Mantive com Elias uma longa conversa, cujo sentido não consegui compreender.

Ao longo das peregrinações oníricas, encontra-se mesmo muitas vezes um velho acompanhado por uma moça; e em numerosos relatos míticos encontram-se exemplos desse mesmo par. Assim, segundo a tradição gnóstica, Simão, o Mago, peregrinava com uma jovem que tirara de um bordel. Ela se chamava Helena e era tida como uma reencarnação de Helena de Troia. Klingsor e Kundry, Lao-Tsé e a dançarina são exemplos do mesmo caso.

Em minha imaginação, como já mencionei, ao lado de Elias e de Salomé havia uma terceira figura; uma grande serpente negra. Nos mitos, a serpente é muitas vezes a adversária do herói. Numerosos relatos testemunham o seu parentesco. Assim, por exemplo, diz-se que o herói tem olhos de serpente; outras vezes, depois de sua morte, o herói é transformado em serpente e venerado sob essa forma. Ou ainda, a serpente é a mãe do herói etc. Na minha fantasia, pois, a presença da serpente anunciava um mito do herói.

Salomé é uma figuração da Anima. É cega, pois não vê o sentido das coisas. Elias é a figuração do profeta velho e sábio: representa o elemento do conhecimento, e Salomé, o elemento erótico. Poder-se-ia dizer que esses dois personagens encarnam o Logos e o Eros. Mas tal definição já é intelectual demais. É mais significativo deixar que esses personagens sejam, primeiro, o que então me pareceram ser, isto é, expressões de processos qu se desenrolavam no fundo do insconsciente.

Pouco depois dessa fantasia, outro personagem surgiu do inconsciente. Configurava-se a partir de Elias. Chamei-o Filemon. Filemon era um pagão que trouxe à superfície uma atmosfera meio egípcia, meio helenística, de tonalidade algo gnóstica. Sua imagem apresentou-se primeiro num sonho:

Havia um céu azul, que também parecia ser o mar. Estava coberto, não de nuvens, mas de torrões de terra que pareciam desagregar-se, deixando visível, entre elas, o mar azul. A água, entretanto, era o céu azul. Subitamente, apareceu um ser alado pairando à direita. Era um velho com chifres de touro. Trazia um feixe de quatro chaves, uma das quais estava em sua mão como se fosse abrir uma porta. As asas eram semelhantes às do martim-pescador, com suas cores características.

Como não compreendesse a imagem do sonho, pintei-a para figurá-la com maior exatidão. Durante os dias em que esse sonho me preocupou, encontrei um martim-pescador morto em meu jardim, à beira do lago! Foi como se um raio me tivesse ferido. É muito raro que essas aves apareçam nos arredores de Zurique. Fiquei por isso bastante impressionado com tal coincidência. O corpo do pássaro ainda estava fresco: não devia ter morrido há mais de dois ou três dias, e não havia sinal de ferida exterior.

Filemon, da mesma forma que outros personagens da minha imaginação, trouxe-me o conhecimento decisivo de que existem na alma coisas que não são feitas pelo eu, mas que se fazem por si mesmas, possuindo vida própria. Filemon representava uma força que não era eu. Em imaginação, conversei com ele e disse-me coisas que eu não pensaria conscientemente. Percebi com clareza que era ele, e não eu, quem falava. Explicou-me que eu lidava com os pensamentos como se eu mesmo os tivesse criado; entretanto, segundo lhe parecia, eles possuem vida própria, como animais na floresta, homens numa sala ou pássaros no ar: “Quando vês um homem numa sala, não pretenderias que os fizestes e que és responsável por eles”, ensinou-me. Foi assim que, pouco a pouco, me informou acerca da objetividade, psíquica e da “realidade da alma”.

Graças aos diálogos com Filemon, esclareceu-se a diferenciação priori. Era para mim um personagem misterioso. De vez em quando me fez compreender que havia uma instância em mim capaz de enunciar coisas que eu não sabia, não pensava, e mesmo coisas com as quais não concordava.

Psicologicamente, Filemon representava uma inteligência superior. Era para mim um personagem misterioso. De vez em quando tinha a impressão de que ele era quase fisicamente real. Passeava com ele pelo jardim e o considerava uma espécie de guru, no sentido dado pelos hiduas a essa palavra.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 3346-3388.

Confronto com o inconsciente

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