“Minha biografia seria incompleta se as reflexões que se seguem neste capítulo não fossem anexadas. Elas constituem esclarecimentos indispensáveis, ainda que corram o risco de parecer teóricas aos olhos do leitor. Mas esta “teoria” é uma forma de existência que fez parte de minha vida; estabelece um modo de ser, tão necessário para mim quanto comer ou beber.
(…)
Um dos dados mais característicos do cristianismo é o fato de que antecipa em seus dogmas um processo de metamorfose na divindade, e consequentemente uma transformação histórica. Isso ocorre sob a forma do novo mito resultante de uma cisão no Céu, à qual se faz alusão pela primeira vez no mito da Criação. De acordo com este mito, um antagonista do Criador aparece como serpente e induz os primeiros homens à desobediência, mediante a promessa de uma consciência amplificada (Cientes bonum et malum). A segunda alusão é a queda dos anjos, invasão “precipitada” do mundo humano pelos conteúdos inconscientes. Os anjos pertencem a um gênero singular: são o que são e não podem ser algo de diferente. Entidades em si mesmas desprovidas de alma, representam os pensamentos e as intuições de seu Senhor. No caso da queda dos anjos, não se trata unicamente de “maus” anjos. Eles determinam o efeito bem conhecido da inflação, que podemos observar hoje no delírio dos ditadores: os anjos criam com os homens uma raça de gigantes que finalmente se dispõe a devorar a humanidade, tal como nos é relatado no Livro de Enoch.”
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 5861-5864.
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