Arquétipos que preexistem à consciência

“(…) quando se admite a existência de uma psique inconsciente, os conteúdos das projeções podem ser integrados em formas instintivas inatas que precedem a consciência.(…) Os arquétipos que preexistem à consciência e que a condicionam aparecem então no papel que realmente desempenham: o de formas estruturais a priori do fundamento instintivo da consciência. Não constituem absolutamente um em-si das coisas, mas sim formas em que são percebidas, consideradas e compreendidas. Naturalmente, os arquétipos não representam a única base da aparência das representações. Eles são apenas os fundamentos da parte coletiva de uma concepção. Enquanto constituem uma qualidade do instinto, participam de sua natureza dinâmica e possuem, por conseguinte, uma energia específica que determina, às vezes de forma constrangedora, modos de comportamento, impulsões. Isso quer dizer que em certas circunstâncias os arquétipos têm uma força de possessividade e de obsessão (numinosidade!). Concebê-los sob a forma de daimonia (poderes sobrenaturais) corresponde perfeitamente à sua natureza.

(…) quando aplicamos a “Deus” a denominação de “arquétipo” nada exprimimos sobre sua natureza própria. Mas reconhecemos, assim, que “Deus” está inscrito nessa parte de nossa alma preexistente à nossa consciência e que, portanto, Ele não pode ser uma invenção desta última. Dessa forma, Deus não é nem afastado nem aniquilado mas, pelo contrário, é posto na proximidade daquilo que se pode experimentar.

Quase todos concordam que a hipótese de o homem ter sido criado em toda a sua glória no sexto dia da Criação, sem degrau anterior, é muito simplista e arcaica para nos satisfazer. Mas em relação à psique, as concepções arcaicas continuam em vigor: a psique não teria antecedentes arquetípicos; seria uma tabula rasa, uma criação inteiramente nova, que tem origem na ocasião do nascimento. Em suma, seria apenas o que ela mesma imagina ser. A consciência é filogenética e ontogeneticamente secundária. Já é tempo de esta evidência ser enfim admitida. O corpo tem uma pré-história anatômica de milhões de anos — o mesmo acontece com o sistema psíquico. O corpo humano atual representa em cada uma de suas partes o resultado desse desenvolvimento, transparecendo as etapas prévias de seu presente; o mesmo acontece com a psique. A consciência começou, segundo a perspectiva de seu desenvolvimento histórico, num estado quase animal de inconsciência, que a criança repete em sua diferenciação. A psique da criança, em estado pré-consciente, é nada menos que tabula rasa; pode-se reconhecer, de todos os pontos de vista, que é pré-formada individualmente e equipada com todos os instintos especificamente humanos, inclusive com os fundamentos a priori das funções superiores.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 6226-6248.

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