Instintos

“Neste ponto de sua argumentação, Jung aborda o tema do instinto humano. O instinto tem suas raízes no físico e ingressa na psique sob a forma de pulsão, pensamento, memória, fantasia e em oção.”

“Na medida em que os hormônios ditam o que fazemos ou sentimos, estamos sujeitos a pulsões e ao instinto. A partie inférieure, ou seja, o nível somático da psique, é fortemente influenciado por processos corporais. Tendo reconhecido esse substrato somático, Jung declara então:

De conformidade com estas reflexões, o psíquico apresenta-se como uma emancipação da função em relação à sua forma instintiva e, portanto, ao seu caráter compulsório que, como única determinante da função, pode transformá-la num mecanismo frio. A condição ou qualidade psíquica começa quando a função se desliga do seu determinismo exterior e interior, e se torna capaz de aplicação mais ampla e mais livre (…)

Quando a informação passa do soma para a psique, ela atravessa a região psicoide e, como resultado, há um considerável abrandamento do determinismo biológico, o qual dá então lugar a uma “aplicação mais ampla e mais livre… onde começa a mostrar-se acessível à vontade motivada a partir de outras fontes”

O aparecimento da vontade é decisivo para o estabelecimento de uma função como psíquica. Fome e sexualidade, por exemplo, são pulsões de base somática que envolvem a descarga de hormônios. Ambas são instintos. A pessoa deve comer e o corpo necessita de descarga sexual. Mas a vontade entra em cena, uma vez que escolhas podem ser feitas sobre o que comer ou como satisfazer os imperativos sexuais. A vontade pode intervir até um certo ponto, mesmo que ela não seja capaz de controlar de forma absoluta 0 comportamento final da pessoa em todos os aspectos.

Se existe um limite para a psique na ponta somática do espectro (a partie inférieure), também há um limite na partie supérieure da consciência: “Com a crescente liberdade em relação ao meramente instintivo, a partie supérieure (consciência) atinge por fim um nível em que a energia intrínseca à função não está mais orientada pelo instinto, no sentido original, mas alcançou uma forma dita espiritual. “O instinto perde o controle da psique até um certo ponto, mas outros fatores intervêm para a controlar e orientar. Jung chama “espirituais” a esses fatores, mas a tradução do alemão geistlich apresenta aqui um problema. Um outro adjetivo que poderia ser igualmente usado é “mental”. Esses fatores controladores são mentais -pertencem à mente, na acepção do grego naus – e não estão mais vinculados a uma base orgânica. Podem atuar como instintos, no sentido de convocar a vontade para a ação, e podem até causar a secreção de hormônios pelo corpo. Jung quer reunir o sistema de soma, psique e espírito num único todo, embora preservando as distinções analíticas entre os vários aspectos.

O ego é motivado em parte por instintos, em parte por formas e imagens mentais. E o ego tem certa liberdade de escolha entre as várias opções. “

O que estou pretendendo deixar claro é o notável fato de que a vontade não pode transgredir os limites da esfera psíquica: ela não pode coagir o instinto nem tem poder sobre o espirito, pois por espírito entendemos muito mais do que apenas o intelecto. O espírito e o instinto são, por natureza, autônomos e ambos limitam em igual medida o campo de aplicação da vontade.

A fronteira psicoide define a área cinzenta entre os potencialmente cognoscíveis e os totalmente incognosciveis os potencialmente controláveis e os totalmente incontroláveis aspectos do funcionamento humano. Não se trata de uma fronteira nítida mas, antes, de uma área de transformação. Os limiares psicoides mostram um efeito a que Jung dá o nome de “psiquização“: a informação não-psíquica torna-se psiquizada, passando do incognoscível para o desconhecido (a psique inconsciente) e daí avançando para o conhecido (consciência do ego). O dispositivo psíquico humano, em suma, mostra capacidade para psiquizar material proveniente dos polos somático e espiritual da realidade não-psíquica.”

“Os instintos funcionam muito precisamente porque são guiados por imagens e formados segundo modelos ou padrões, os quais constituem também o significado do instinto. Neste ponto do seu ensaio, Jung liga os arquétipos, os padrões mentais básicos, aos instintos. Os instintos são guiados e orientados por imagens arquetípicas.”

“Uma vez que Jung não podia provar de forma inequívoca que arquétipos e instintos não são idênticos, o reducionismo biológico permanecia como uma possibilidade.

Entretanto, ela também sabia que os arquétipos, quando aparecem, têm um caráter distintamente numinoso, o qual só pode ser descrito como “espiritual”, se acharem que “mágico” é uma palavra forte demais. Consequentemente, este fenômeno é de suma importância para a psicologia da religião. O seu efeito, porém, não é claro. Pode ser curativo ou destrutivo, mas jamais indiferente, pressupondo-se, naturalmente, um certo grau de clareza. Esse aspecto merece o epíteto de “espiritual” por excelência. Isto é, acontece não raras vezes que o arquétipo aparece sob a forma de espírito nos sonhos ou produtos de fantasia, ou comporta-se inclusive como um fantasma. Há uma certa aura mística em torno de sua numinosidade, e esta exerce um efeito correspondente sobre as emoções. Ele mobiliza concepções filosóficas e religiosas justamente em pessoas que se consideram muito acima de semelhantes acessos de fraqueza. Ele nos impele com frequência para o seu objetivo, com tão inaudita paixão e tão implacável lógica que o sujeito submete-se ao seu sortilégio, não quer e, em última instância, já não deseja livrar-se dele, justamente porque tal experiência traz consigo uma profundidade e plenitude de sentido que era impensável antes.

As imagens arquetípicas e as ideias delas derivadas têm um extraordinário poder para influenciar a consciência de um modo tão eficiente quanto os instintos identificáveis. Isso levou Jung a persuadir-se de que os arquétipos não estão limitados aos instintos, de que o espírito não é redutível ao corpo nem a mente ao cérebro.”

Stein, Murray. Jung, O Mapa da Alma – Uma introdução. Ed. Cultrix, 2020, Local Kindle 2436-2546.

4.As Fronteiras da Psique (Instintos)

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