A Experiência de Jung do Si mesmo

“Em sua autobiografia, designou esse período como de “Confronto com o Inconsciente”. Na época de sua momentosa descoberta, Jung já estava em plena crise da meia-idade. Completara há pouco os 41 anos, rompera com Freud uns cinco anos antes e sofrera, depois disso, um período de desorientação emocional e incerteza profissional, do qual estava agora recuperando- se gradualmente.”

“(…)Jung registrou seus sonhos, fantasias e outras importantes experiências num documento minuciosamente detalhado e ilustrado que passou a ser chamado o “Livro Vermelho”, Enquanto se empenhava em separar e classificar as imagens e emoções que surgiam inopinadamente nele, oriundas do inconsciente, procurava também entender como elas se encadeavam e o que significavam. Tinha usado práticas tais como a respiração ioga para manter o seu equilíbrio emocional. Quando suas emoções ameaçavam destruir-lhe o equilíbrio e a sanidade psíquicos, usou a meditação, a ludoterapia, a imaginação ativa e o desenho para se apaziguar. Um terapeuta para si mesmo, elaborou técnicas (que usaria mais tarde com pacientes) para manter estável a sua própria consciência do ego, em meio a esse caudal de material proveniente do inconsciente.

“Agora, como continuou a observar, escutar e registrar suas experiências interiores, sua abertura recrudesceu para o polo arquetípico do continuo psíquico e para o mundo do espírito no qual ele se incorpora. Depois de passar vários anos no “nível da anima”, começou a ingressar num território que revelou o arquétipo do si-mesmo, o arquiteto mais fundamental da integridade e ordem psíquicas. (…) Jung conta como numa tarde de domingo, em 1916, quando se encontrava em sua sala de estar na Seestrasse, em Küsnacht, sentiu como que uma densa atmosfera emocional na casa. As pessoas na casa pareciam tensas e irritadiças. Ele não entendia por que mas a atmosfera parecia singularmente opressiva como se estivesse repleta de espíritos. De súbito, tocou a sineta da porta. Jung levantou-se e foi atender, mas não havia ninguém. No entanto, a sineta estava claramente movendo-se. Ele jura que a viu mover-se. Sozinha! Quando a criada perguntou quem tinha feito soar a sineta, Jung respondeu-lhe que não sabia, pois não havia ninguém na porta. A sineta soou de novo. Desta vez, a criada também viu a sineta da porta mover-se. Entreolharam-se, estupefatos. Ele não estava, pois, tendo uma alucinação. E Jung ouviu então as seguintes palavras sugerirem-se espontaneamente:

Os mortos voltaram de Jerusalém, onde não encontraram o que procuravam. Pediram-me guarida e imploraram que lhes falasse. Assim comecei a ensinar...”

Decidiu escrever essas palavras. Outras mais vieram:

“Prestei atenção, começo pelo nada. O nada equivale à plenitude. No infinito, cheio não é melhor do que vazio. O nada é, ao mesmo tempo, vácuo e plenitude. Dele se pode dizer tudo o que se quiser, por exemplo, que é branco ou preto, ou, ainda, que é ou não é. A esse nada ou plenitude da-se o nome de PLEROMA.”

Nos dias seguintes, Jung escreveu, como se lhe tivesse sido ditado, um texto gnóstico intitulado Sete Sermões aos Mortos [Septem Sermones ad Mortuos). Esses ensinamentos, apresentados nas palavras e sob a identidade do antigo mestre gnóstico Basilides, é uma mensagem que chegou a Jung vinda da esfera arquetípica da psique.

Sabe-se, é claro, que Jung estava muito interessado no gnosticismo antes dessa visitação e que lera numerosos fragmentos de antigos textos gnósticos, de modo que existiam, sem dúvida, muitas conexões com essa experiência visionária em sua sala de estar e biblioteca. Entretanto, isso era também uma nova obra sumamente imaginativa e criativa, embora na forma de um pomposo texto religioso, e provinha das profundezas da própria psique de Jung. Ele não estava simplesmente citando de memória mesmo a criptomnésia não explica isso, uma vez que não pode ser encontrado em nenhum dos textos clássicos da Gnose. Tampouco ele estava tentando escrever deliberadamente no estilo dos gnósticos. Esse escrito não era intencional. Em retrospecto, pode-se ver que esse texto, que foi concluído en cerca de três dias, contém as sementes de muitas ideias que Jung elaboraria nas décadas seguintes em termos intelectuais e científicos mais racionais. Essa foi uma das muitas e incomuns experiências psíquicas durante esses anos de confronto com 0 inconsciente.”

“Esse período coincidiu quase exatamente com a I Guerra Mundial, durante a qual a Suíça, um país neutro, foi isolada da Europa e do resto do mundo. Viajar era impossível. Como todos os homens adultos suiços, Jung estava no exército – era oficial médico e foi nomeado para o papel de comandante do campo de prisioneiros de guerra em Chateau d’Oex, na parte do país de fala francesa. Deve ter sido um serviço administrativo razoavelmente enfadonho e começou a gastar rotineiramente algum tempo todas as manhãs desenhando circulos e desenvolvendo-os ao sabor de sua imaginação. Depois desse exercício, sentia-se revigorado e pronto para enfrentar mais um dia de rotina. Essa atividade mantinha-o concentrado, diz ele em sua autobiografia.

Alguns desses desenhos converteram-se em pinturas muito elaboradas. Mais tarde, Jung comparou-as com o que os budistas tibetanos chamam de mandalas, imagens que representam o cosmo, o universo espiritual do budista praticante.”

“(…)(Uns vinte anos depois, em sua viagem à Índia, Jung notaria com grande interesse como as pessoas pintam essas imagens tradicionais nas paredes de seus lares ou em templos, a fim de permanecerem ligadas aos poderes espirituais cósmicos ou desviar forças e influências malignas. As mandalas têm uma função simultaneamente protetora e devota.) Jung deu-se conta de que estava reproduzindo um padrão arquetipico subjacente universal que tinha tudo a ver com a colocação das coisas em boa ordem. Essa experiência acabaria por leva-lo à conclusão de que se um processo psíquico que se desenrola espontaneamente for seguido por seu próprio fim lógico, e se lhe for permitido expressar-se plenamente, o objetivo desse processo estará cumprido, a saber, manifestar imagens universais de ordem e uma unidade. A mandala é um símbolo universal que expressa a intuição de integridade ordenada.”

“Essa experiência de desenhar e elaborar mandalas seria mantida por Jung como a experiência central do si-mesmo: emergindo lenta, empírica e espontaneamente na consciência.”

“(…)(Embora a intensidade de sua crise da meia-idade declinasse por volta de 1920, as prolongadas consequências continuaram até 1928, quando Jung estava com 52 anos.) Na casa dos 40, viveu Jung numa espécie de limbo psicológico, de um modo intenso e profundo no começo e depois mais brando. No final, teve um sonho em que se encontrou sozinho na cidade inglesa de Liverpool. Estava caminhando pelas ruas com um grupo de amigos suíços numa noite chuvosa, e não tardaram em chegar a uma vasta praça onde desembocavam muitas ruas. Os quarteirões da cidade estavam dispostos radialmente em torno da praça, no centro da qual havia um lago com uma pequena ilha. Embora toda a área circundante estivesse mergulhada na escuridão, essa ilhota estava brilhantemente iluminada. Nela se erguia uma árvore solitária, uma magnólia repleta de flores avermelhadas. Seus companheiros pareciam incapazes de ver a bela árvore, mas Jung sentia-se arrebatado pela beleza da árvore em flor. Mais tarde, ele interpretou esse sonho com o significado de que The tinha sido propiciada uma visão do centro, o si-mesmo, uma imagem de sobrenatural beleza que está localizada no “lago da vida” (Liverpool, the pool of life), Dessa experiência onirica, escreve ele, “resultou uma primeira e vaga ideia do que deveria ser o meu mito pessoal”. Nessa passagem fundamental, Jung declara ser o si-mesmo o centro do seu mito pessoal. Mais tarde, concebê-lo-ia como o arquétipo primordial (o Uno), do qual, em última instância, todos os outros arquétipos e imagens arquetípicas derivam. O si-mesmo é o centro magnético do universo psicológico de Jung. Sua presença atrai a agulha da bússola do ego para o norte verdadeiro.”

 

Stein, Murray. Jung, O Mapa da Alma – Uma introdução. Ed. Cultrix, 2020, Local Kindle 3777-3869.

7. O Centro transcendente e a integridade da psique (A Experiência de Jung do Si mesmo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Gostei e vejo sentido em compartlhar essa ideiA

Facebook
Twitter
Pinterest

QUER MAIS?