A neurose

“Às vezes apareciam rostos de pessoas conhecidas que logo depois morriam.) Melhor do que tudo, porém, era mergulhar completamente no mundo do mistério: a ele pertenciam as árvores, a água, os pântanos, as pedras, os animais e a biblioteca de meu pai. Era maravilhoso.

Certo dia, um amigo de meu pai veio visitá-lo. Ambos estavam sentados, conversando no jardim e eu, atrás dele, escondido num arbusto espesso, tentava escutar o que diziam, pois minha curiosidade era insaciável. Ouvi o primeiro dizer: “E seu filho, como vai?” Meu pai respondeu: “Ah, é uma história penosa! Os médicos ignoram o que ele tem. Falaram em epilepsia: seria terrível se fosse incurável! Perdi o pouco que tinha e o que será dele se for incapaz de ganhar a vida?” Foi como se um raio me ferisse. Sofrera o duro embate com a realidade. “Ah, então é preciso trabalhar!”, pensei. E a partir desse momento tornei-me uma criança sensata. Retirei-me cautelosamente, entrei no escritório de meu pai e, tomando uma gramática latina, procurei aplicar-me, num esforço de concentração. Ao fim de dez minutos desmaiei, quase caindo da cadeira, mas pouco depois me senti melhor e continuei a estudar. “Com todos os diabos, não vou mais desmaiar!”, disse comigo mesmo e prossegui, tentando ler. Depois de um quarto de hora mais ou menos sofri uma segunda crise. Ela passou, como a primeira. “E agora, você vai trabalhar de verdade!” Esforcei-me, e ao fim de meia hora adveio a terceira crise. Não desisti e trabalhei mais uma hora, até sentir que os acessos tinham sido superados. Subitamente me senti bem melhor do que nos meses anteriores. Com efeito, as crises não se repetiram mais e, a partir desse momento, comecei a estudar gramática diariamente e voltei aos meus cadernos de escola. Algumas semanas depois retornei ao colégio e as crises não reapareceram. O sortilégio fora conjurado! — Foi assim que fiquei sabendo o que é uma neurose.

A neurose fora meu novo segredo, mas um segredo vergonhoso, uma derrota. Entretanto, ela me encaminhara ao amor da precisão e a uma diligência peculiar. Comecei a ser consciencioso diante de mim mesmo, e não somente a fim de aparentar valor. Levantava-me pontualmente às cinco horas e às vezes estudava das três às sete da manhã, antes de ir para o colégio. O que me extraviara fora a paixão de estar só, o fascínio da solidão.

Na mesma época ocorreu outro acontecimento importante, enquanto eu percorria o longo trajeto entre Klein-Hüningen, lugar onde morávamos, e a escola em Basileia. Tive a sensação arrebatadora de emergir de uma névoa espessa, tomando consciência de que agora eu era eu. Era como se atrás de mim houvesse um muro de névoa além do qual eu ainda não existia. Neste instante preciso eu me tornei eu por mim mesmo. Antes eu estivera lá mas tudo se produzia passivamente; dali em diante, eu o sabia: agora eu sou eu. Agora eu existo. Tal acontecimento pareceu-me extraordinariamente significativo e inusitado.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 850-881.

Anos de Colégio

Gostei e vejo sentido em compartlhar essa ideiA

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