“Em Bollingen sou mais autenticamente eu mesmo, naquilo que me concerne. Aqui sou, por assim dizer, um filho “arquivelho” de sua “mãe”. Assim fala a sabedoria dos alquimistas, pois o “velho”, o “arquivelho” que eu sentira em mim, quando criança, é a personalidade número dois que sempre viveu e sempre viverá, fora do tempo, filho do inconsciente materno. Em minhas fantasias, o “arquivelho” tomava a forma de Filemon e este era vivo em Bollingen.
Nada há na torre que não tenha surgido e crescido ao longo dos decênios, nada a que eu não esteja ligado. Tudo tem sua história, que é também a minha história, e aqui há lugar para o domínio não espacial dos segundos planos. Renunciei à eletricidade e acendo eu mesmo a lareira e o fogão. À tarde acendo os velhos lampiões. Não há água corrente; preciso tirá-la do poço acionando a bomba manual. Racho a lenha e cozinho. Esses trabalhos simples tornam o homem simples, e é muito difícil ser simples.
(…)
Ocorreu-me imediatamente uma estrofe latina do alquimista Arnaud de Villeneuve (morto em 1313); resolvi esculpi-la na pedra. A tradução é esta:
Eis a pedra, de humilde aparência. No que concerne ao valor, pouco vale — Desprezam-na os tolos E por isso mais a amam os que sabem.
Esse verso concerne à pedra (lapis) do alquimista, à pedra rejeitada e desprezada pelo ignorante.
Logo observei um detalhe: no plano anterior distingui, na estrutura natural da pedra, um pequeno círculo, uma espécie de olho que me fitava. Cinzelei-o e coloquei um homenzinho no centro: é o boneco que corresponde à pupila do olho, espécie de Cabiro ou de Telésforo de Esculápio. Ele usa um manto com capuz e tem uma lanterna, tal como se vê nas representações antigas. Ao mesmo tempo, é aquele que indica o caminho! Dediquei-lhe algumas palavras que me vieram ao espírito enquanto trabalhava. A inscrição é em grego; eis a tradução: “O tempo é uma criança — brincando como uma criança — sobre um tabuleiro de xadrez — o reino da criança. Eis Telésforo, que vaga pelas regiões sombrias deste cosmo e que brilha qual estrela se erguendo das profundidades. Indica o caminho das portas do sol e país dos sonhos.”
Essas palavras vieram-me ao espírito, uma depois da outra, enquanto trabalhava a pedra.”
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 4134-4154.
A torre