Conhecimento real

“(…)Não tinha essa certeza, mas ela me possuía, apesar de todas as convicções contrárias. Ninguém conseguiu demover-me da certeza de que estava no mundo para fazer o que Deus queria e não o que eu queria. Em todas as circunstâncias decisivas isso sempre me deu a impressão de não estar entre os homens, mas de estar a sós com Deus. Sempre que estava “lá” e, portanto, não mais a sós, me sentia fora do tempo, nos séculos, e Aquele que me respondia era O que sempre foi e sempre será. Este diálogo com o “Outro” constituiu minha mais profunda vivência: por um lado, luta sangrenta e, por outro, supremo arrebatamento.

(…) talvez só minha mãe poderia ser uma confidente. Mas logo percebi sua insuficiência. Ela me admirava e tal fator não era precisamente favorável; assim, pois, fiquei a sós com meus pensamentos e no fundo era isso o que eu queria. Brinquei comigo mesmo, caminhei e sonhei sozinho, vivendo dentro de um mundo misterioso e afastado.

Havia uma notável diferença entre as duas personalidades de minha mãe. Quando criança, tive sonhos de angústia motivados por ela. Durante o dia, era uma mãe amorosa, mas de noite a julgava temível. Parecia então uma vidente que ao mesmo tempo é um estranho animal, uma sacerdotisa no antro de um urso, arcaica e cruel. Cruel como a verdade e a natureza. Era a encarnação de uma espécie de natural mind.3

(…)De minha mãe herdei o dom, nem sempre agradável, de ver homens e coisas tais como são. Naturalmente posso enganar-me redondamente quando não quero reconhecer algum detalhe, mas no fundo sempre sei do que se trata. O “conhecimento real” está ligado a um instinto, à participation mystique com o outro. Poder-se-ia dizer que é o “olhar mais profundo” que vê, num ato impessoal de intuição. Só mais tarde compreendi este fato, quando ocorreu um estranho incidente: relatei sem saber a vida de um homem que eu não conhecia. Foi na festa de casamento de uma amiga da minha mulher, acerca de cuja família eu nada sabia. À mesa, diante de mim, estava sentado um senhor de meia-idade, com uma bela barba, que me fora apresentado como sendo um advogado. Conversávamos animadamente sobre psicologia criminal. A fim de responder a uma dada questão que me propusera, imaginei um caso, adornando-o de numerosos detalhes. Enquanto falava, notei que meu interlocutor ia mudando totalmente de expressão e que um silêncio estranho se fazia em torno da mesa. Surpreendido, calei-me. Graças a Deus, já estávamos na sobremesa. Levantei-me e fui para o hall do hotel. Isolei-me num canto, acendi um charuto e tentei refletir acerca da situação. Nesse momento, um dos convivas que estivera à mesa aproximou-se de mim e me censurou: — Como é que o senhor pôde cometer uma tal indiscrição? — Indiscrição? — Sim, a história que contou! — Mas eu a inventei de ponta a ponta! Com grande espanto, soube então que contara com todos os detalhes a história do advogado que se sentara diante de mim, à mesa. Constatei igualmente que não me lembrava mais de uma só palavra de tudo o que dissera, esquecimento que perdura até hoje.

Várias vezes em minha vida me inteirei subitamente de certos acontecimentos que não podia conhecer. Esse saber me assaltava a modo de uma ideia súbita.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 1133-1193.

Anos de Colégio II

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