“O mais importante é diferenciar o consciente dos conteúdos do inconsciente. É necessário, por assim dizer, isolar estes últimos, e o modo mais fácil de fazê-lo é personificá-los, estabelecendo depois, a partir da consciência, um contato com estes personagens. Apenas dessa maneira é possível despotenciá-los, sem o que irão exercer seu poder sobre o consciente. Como os conteúdos do inconsciente possuem certo grau de autonomia, esta técnica não oferece dificuldades particulares. Mas outra coisa é familiarizar-me com o fato geral da autonomia dos conteúdos inconscientes. Entretanto, nisso reside a possibilidade mesma de uma interrelação com o inconsciente.
Meu amigo vivia, não em função da consciência que tinha de si mesmo, mas dependendo da apreciação dos outros. Isso é perigoso. Perdendo a segurança em si mesmo, ele se tornara permeável às insinuações da anima. Entretanto, o que esta diz é muitas vezes de uma grande força de sedução e de uma astúcia sem limites.
Se eu tivesse as fantasias do inconsciente por manifestações artísticas, tê-las-ia contemplado com meu olho interior ou deixado que elas se desenrolassem como um filme. Não seriam mais convincentes do que qualquer percepção dos sentidos e, por outro lado, não teriam despertado em mim qualquer vestígio de dever moral. A anima teria podeido convencer-me de que eu era um artista desconsiderado e a minha soi-disant natureza de artista ter-me-ia dado o direito de negligenciar o real. (…) A ambiguidade da anima, mensageira do inconsciente, pode aniquilar um homem de uma vez por todas. Mas o decisivo, em última instância, é sempre o consciente, pois é ele que deve compreender as manifestações do inconsciente e tomar posição frente a elas.
Entretanto, a anima tem também um aspecto positivo. É ela que transmite ao consciente as imagens do inconsciente e é isso que me parecia o mais importante. Durante décadas, dirigi-me à anima quando minha afetividade estava perturbada e me achava intranquilo. Nessas ocasiões havia sempre algo constelado no inconsciente. Então eu interrogava a anima: “O que se passa contigo? O que vês? Queria sabê-lo!” Depois de algumas resistências ela produzia sempre uma imagem. Assim que essa imagem se formava, a agitação ou a tensão desapareciam. Toda a energia de minhas emoções transformava-se, dessa forma, em interesse e curiosidade por seu conteúdo. Depois eu falava com a anima a propósito das imagens, pois sentia a necessidade de compreendê-las, tanto quanto possível à maneira de um sonho.
Hoje, não recorro mais às conversas com a anima, pois não tenho mais emoções dessa natureza. Se as tivesse, agiria da mesma forma. As ideias são, agora, para mim, imediatamente conscientes, pois aprendi a aceitar e a compreender os conteúdos do inconsciente. Sei como comportar-me em face das imagens diretamente nos meus sonhos e não sinto mais a necessidade de uma intermediária.”
JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 3453-3468.
Confronto com o inconsciente