Impulso criador

“(…) Não me cansava de olhar. Minha tia puxava-me pela mão, impelindo-me em direção à saída. Eu ficava sempre um pouco para trás, enquanto ela gritava repetidamente: “Menino insuportável, feche os olhos!” Só nesse momento observei que os corpos estavam nus, o sexo oculto sob folhas de parreira! Antes não havia notado esse detalhe. Foi assim que se deu meu primeiro confronto com as belas-artes. Minha tia protestava, indignada, como se tivesse sido obrigada a atravessar uma galeria pornográfica.

Este comportamento nada infantil prendia-se, por um lado, a uma grande sensibilidade e vulnerabilidade e, por outro, de um modo todo particular, à grande solidão da minha primeira juventude. (Minha irmã era nove anos mais nova do que eu.) Eu brincava só e a meu modo. Infelizmente não consigo lembrar-me de que brincava. Só sei que não queria ser perturbado. Mergulhava com fervor no brinquedo e não podia suportar que me observassem ou julgassem. Sei porém que dos sete aos oito anos brincava apaixonadamente com cubos de madeira, construindo torres que depois demolia, com volúpia, provocando “tremores de terra”. Dos oito aos 11 anos, desenhava uma infinidade de quadros de batalhas, cercos, bombardeios, combates navais. Depois enchia um caderno inteiro de borrões de tintas cujas interpretações fantásticas me divertiam.

(…) toda a espécie de mistérios angustiosos e indecifráveis pairava no ar. Meus pais dormiam separados. Eu dormia no quarto de meu pai. Da porta que conduzia ao quarto de minha mãe vinham influências inquietantes. De noite, minha mãe tornava-se temível e misteriosa. Uma noite vi sair de sua porta uma figura algo luminosa, vaga, cuja cabeça se separou do pescoço e planou no ar, como uma pequena lua. Logo apareceu outra cabeça que também se elevou. Esse fenômeno repetiu-se umas seis ou sete vezes.

Lembro-me de que nessa época (de meus sete aos nove anos) gostava de brincar com fogo. Em nosso jardim havia uma velha parede construída com grandes blocos de pedra, cujos interstícios formavam vazios curiosos. Com a ajuda de outras crianças eu costumava manter uma pequena fogueira acesa dentro deles. O fogo devia arder “sempre”, portanto era necessário alimentá-lo continuamente.

Trinta anos mais tarde encontrei-me de novo no flanco dessa colina; já era casado, tinha filhos, uma casa, um lugar no mundo, a cabeça cheia de ideias e projetos e, repentinamente, redescobri em mim a criança que acende uma fogueira cheia de significações secretas, que se senta numa pedra sem saber se ela é a pedra ou se a pedra é ela. — Lembrei-me bruscamente de minha vida em Zurique e ela me pareceu estranha como uma mensagem vinda de outro mundo e de outro tempo. Isto era simultaneamente terrível e cheio de sedução. O mundo da minha infância, no qual eu acabava de mergulhar, era eterno e dele eu fora arrancado, precipitado num tempo que ia rolando incessantemente e se afastando cada vez mais. Tive que me desviar à força desse lugar para não comprometer o meu futuro.

Apresentou-se-me a imagem de uma pedra polida, pintada de tal maneira que a parte superior se distinguia da parte inferior. Mas ela não me parecia algo desconhecido e foi então que me voltou à lembrança um estojo amarelado de guardar canetas e um homenzinho. Este era um pequeno deus oculto dos antigos, um telésforo que em muitas representações antigas aparece perto de Esculápio, para o qual lê, num rolo que tem nas mãos. Com retorno dessa lembrança fui, pela primeira vez, levado à ideia de que existem elementos arcaicos na alma, que não penetraram na alma individual a partir de uma tradição qualquer. Não havia, com efeito, na biblioteca de meu pai — que, nota bene, só explorei muito mais tarde — um só livro que contivesse tais informações. É fato comprovado que meu pai também ignorava tudo acerca dessas coisas.

Somente então o inconsciente me sugeriu um nome para ela: Atmavictu: breath of life (sopro de vida). É um desenvolvimento mais amplo daquele objeto quase sexual da minha infância, sublinhado porém como breath of life, como impulso criador.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 618-739.

Infância

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