O mito é o degrau entre o inconsciente e o consciente.

“O mito é o degrau intermediário inevitável entre o inconsciente e o consciente. Está estabelecido que o inconsciente sabe mais que o consciente, mas seu saber é de uma essência particular, de um saber eterno que, frequentemente, não tem nenhuma ligação com o “aqui” e o “agora” e não leva absolutamente em conta a linguagem que fala nosso intelecto. Somente quando damos às suas afirmações a oportunidade de “amplificar-se”, como mostramos mais acima, através dos números, é que este saber do inconsciente penetra no domínio de nossa compreensão, tornando possível a percepção de um novo aspecto. Este processo se repete de maneira convincente em todas as análises de sonhos bem-sucedidas. Por esse motivo é da mais alta importância não ter opinião doutrinária preconcebida sobre o que diz um sonho. A partir do momento em que ficamos surpreendidos por “certa monotonia de interpretação” é que a interpretação tornou-se doutrinal e, por conseguinte, estéril.

(…)

Uma noite eu não conseguia dormir e pensava na morte repentina de um amigo, enterrado no dia anterior. Sua morte me preocupava muito. Subitamente tive a impressão de que ele estava no meu quarto, ao pé da minha cama, e que me pedia que fosse com ele. Não julgava tratar-se de uma aparição; pelo contrário, formara do morto uma imagem visual interior e tomei-a por uma fantasia. Mas, honestamente, foi-me necessário perguntar: “Que prova tenho de que se trata de uma fantasia? E se não for? Caso meu amigo esteja realmente presente, não seria uma inconveniência de minha parte tomá-lo por uma figura imaginária?” Mas também não tinha qualquer prova para acreditar que ele estivesse realmente diante de mim. Então disse a mim mesmo: “Em lugar de considerar que se trata apenas de uma fantasia, posso, da mesma maneira, aceitá-lo como se fora uma aparição, pelo menos para ver o que disso resultaria.” No mesmo momento em que tive esse pensamento, ele se dirigiu para a porta e fez com que eu entrasse no jogo. Isso certamente não estava previsto. Foi-me necessário então fortalecer a argumentação. Então somente o segui em imaginação.

Ele me conduziu para fora de casa, ao jardim, à rua e finalmente à sua casa. (Na realidade apenas algumas centenas de metros a separavam da minha.) Entrei, introduziu-me em seguida em seu escritório e, subindo num tamborete, indicou-me o segundo volume de uma série de cinco, encadernados em vermelho; eles se encontravam muito alto na segunda prateleira. Então a visão se dissipou. Não conhecia sua biblioteca e ignorava que livros possuía. Por outro lado, não poderia de onde estava ler os títulos dos volumes que ele indicara, pois se encontravam na prateleira superior.

Esse fato me pareceu tão estranho que, na manhã seguinte, fui à casa da viúva e pedi autorização para entrar na biblioteca do meu falecido amigo para uma verificação. Realmente, havia debaixo da prateleira vista em minha imaginação um tamborete e, já de longe, percebi os cinco volumes encadernados em vermelho. Subi no tamborete para ler os títulos. Eram traduções dos romances de Zola. O título do segundo era: O legado de uma morta. Se o conteúdo me pareceu desprovido de interesse, o título era, por outro lado, muito significativo pela relação com o que se passara.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 5603-5612.

Sobre a vida depois da morte

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