Ouvi então vozes

“No início da primavera de 1924, estava de novo em Bollingen. Encontrava-me só e tinha acendido o fogão. Era uma tarde silenciosa, como a que acabei de descrever. Durante a noite, passos leves me despertaram: alguém caminhava em torno da torre. Uma música longínqua aproximava-se cada vez mais e ouvi então vozes, risos, conversas. Pensei: “Quem será? O que significa isso? Só há um atalho ao longo do lago, e é raro que alguém passe por ele.” Refletindo, acordei completamente e fui à janela; abri as venezianas: tudo estava em silêncio, não havia ninguém; nenhum ruído, nada. Não ventava, não havia nada, nada, absolutamente nada.

“Que coisa estranha”, pensei. Estava certo de que os ruídos de passos, os risos e as conversas tinham sido reais. Mas ao que parecia fora apenas um sonho. Voltei à cama e comecei a refletir acerca de nosso poder de ilusão. Como fora possível que eu tivesse um tal sonho? Adormeci de novo e o mesmo sonho recomeçou. Ouvi novamente os passos, as conversas, os risos e a música. E, ao mesmo tempo, tive a representação visual de centenas de pessoas com roupas escuras, talvez jovens camponeses com suas roupas domingueiras, vindos da montanha, numa multidão que passava pelos dois lados da torre, batendo os pés, rindo, cantando e tocando sanfona. Irritado, pensei: “É de se mandar ao diabo!” Pensei que se tratasse de um sonho e eis que agora é verdade! Acordei, emocionado. Levantei-me depressa, abri as janelas e as venezianas, mas tudo estava como antes: noite enluarada e silêncio de morte. Pensei, então: “São simples fantasmas!”

É claro que perguntava a mim mesmo qual poderia ser o sentido de um sonho que insistia a tal ponto sobre sua realidade, e sobre o meu pseudoestado de vigília. Isso só acontece quando se trata de fantasmas. Estar acordado equivale a perceber a realidade. O sonho representa, pois, uma situação equivalente à realidade, na qual cria uma espécie de vigília. Esse gênero de sonho, ao contrário dos sonhos comuns, trai a tendência do inconsciente de transmitir ao que sonha uma verdadeira impressão do real, que a repetição sublinha ainda mais. Como fontes de tais realidades conhecemos, por um lado, as sensações corpóreas e, por outro, as figuras arquetípicas.

Naquela noite tudo era — ou pelo menos parecia ser — tão perfeitamente real que era difícil situar-me entre as duas realidades. Não sabia o que isso significava.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 4199.

A torre

Gostei e vejo sentido em compartlhar essa ideiA

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