Posse de um segredo

“A melhor maneira do indivíduo se proteger do risco de confundir-se com os outros é a posse de um segredo que queira ou deva guardar. Todo o início da formação de sociedades implica a necessidade de uma organização secreta. Quando não há motivos suficientemente imperiosos para a manutenção do segredo, inventam-se ou “arranjam-se” segredos que só são “conhecidos” ou “compreendidos” pelos que têm o privilégio de iniciação. Assim foi entre os rosa-cruzes e muitas outras sociedades secretas.

A necessidade de cercar-se de mistério é de importância vital no estágio primitivo, pois o segredo compartilhado constitui o cimento da coesão do grupo. No estágio social, o segredo representa uma compensação salutar da falta de coesão da personalidade individual, que submerge e se dispersa mediante recaídas sucessivas na identidade primitiva inconsciente com os outros.

A sociedade secreta é um estágio intermediário no caminho da individuação: confia-se ainda a uma organização coletiva a tarefa de ser diferenciado por ela, isto é, ainda não se compreendeu que é tarefa do indivíduo ficar de pé, por si mesmo, e ser diferente dos demais. Todas as identidades coletivas, quer se refiram a organizações, quer a profissões de fé relativas a tal ou qual ismo, etc. ameaçam e se opõem ao cumprimento dessa tarefa.

(…)

Por este motivo não se deve considerar esse grau intermediário um obstáculo; ele representa, ao contrário, e ainda por muito tempo, a única possibilidade de existência do indivíduo que hoje, mais do que nunca, se encontra ameaçado pelo anonimato. O fato de pertencer a uma organização coletiva é tão importante na nossa época que tem mesmo o direito de parecer como meta definitiva, enquanto toda tentativa de sugerir ao homem a eventualidade de um passo a mais no caminho da autonomia pessoal é considerada presunção, desafio prometeico, fantasia ou mesmo impossibilidade. Mas pode acontecer que alguém, por motivos importantes, se sinta constrangido a procurar o seu caminho, por seus próprios meios, em direção a horizontes mais largos, porquanto não encontra em nenhuma forma, em nenhum molde, em nenhum dos envoltórios, em nenhum dos meios de vida que lhe são oferecidos, aquele que lhe convém. E então irá só, representando sua própria sociedade. Será sua própria multiplicidade que se compõe de numerosas opiniões e numerosas tendências, nem todas seguindo, necessariamente, o mesmo sentido. Pelo contrário, estará em estado de dúvida em relação a si mesmo, e sofrerá grandes dificuldades para conduzir sua própria multiplicidade a uma ação homogênea e integrada. Mas o fato de estar exteriormente protegido pelas formas sociais de um desses graus intermediários, aos quais acabamos de nos referir, não implica que esteja protegido da multiplicidade interior que o cinde intimamente e o impele a voltar ao desvio que representa a identidade com o mundo exterior.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 6135-6153.

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