Reunindo a coragem

“Houve ainda um outro incidente que me lembrou o século XVIII. Vira, em casa de uma tia, uma estatueta dessa época, que representava dois personagens em terracota pintada. Um deles era o velho dr. Stuckelberger, personalidade famosa da cidade de Basileia. A outra figura representava uma de suas doentes, com os olhos e a língua de fora. Havia uma lenda a respeito disso. Contava-se que certo dia o velho Stuckelberger atravessava a ponte do Reno, quando viu aproximar-se essa doente que muitas vezes o irritara: ela se queixava como de costume. O velho médico disse então: “Sim, sim, minha senhora, há algo que não vai bem. Feche os olhos e mostre a língua!” Foi o que ela fez, enquanto ele se afastava, deixando-a lá, com a língua de fora, sob a risada dos transeuntes. Ora, a figura do velho doutor tinha sapatos de fivela que reconheci estranhamente como meus ou semelhantes aos meus. Estava convencido disso. “Usei esses sapatos.” Essa convicção me perturbara de um modo profundo. “Sim, eram realmente os meus sapatos!” Eu os sentia ainda nos pés e não podia compreender essa estranha sensação. Como poderia pertencer ao século XVIII? Acontecia-me às vezes, datando, escrever 1786 em lugar de 1886 e isso era sempre seguido de um sentimento de inexplicável nostalgia. Depois de minha escapadela de barco, no lago de Lucerna, e depois da punição bem-merecida, comecei a refletir sobre tudo isso. As impressões até então isoladas se condensaram numa imagem homogênea: vivo em duas épocas diferentes, sou duas pessoas diversas. Essa descoberta perturbou-me, mas em meio à perplexidade cheguei à conclusão decepcionante de que, pelo menos no momento, era apenas o menino de escola que merecera a punição e que devia comportar-se como convinha a sua idade.

Aos meus malogros anteriores em matemática e desenho acrescentou-se um terceiro: desde o princípio, detestara a ginástica. Era-me insuportável que alguém desse ordens acerca da maneira pela qual deveria mover o corpo. Ia à escola para aprender e não para me entregar a acrobacias insensatas, inúteis!

(…)

Na terceira noite, porém, meu pensamento era de tal natureza que não sabia mais o que fazer. Acordara de um sono agitado, pensando ainda na catedral e no Bom Deus. Sentia-me a ponto de permitir o curso final do pensamento! Minha resistência enfraquecia. Suando de angústia, sentei-me na cama para afugentar o sono: “Vai ser agora, agora é sério! Eu preciso pensar, isso deve ser pensado. Mas por que devo pensar em algo que não sei o que é? Por Deus, tenho a certeza de que não quero pensar nisso. Mas quem está me forçando? Quem está me obrigando contra minha vontade a pensar naquilo que ignoro?

(…)

Reuni toda a coragem, como se fosse saltar nas chamas do Inferno, e deixei o pensamento emergir: diante de meus olhos ergue-se a bela catedral e, em cima, o céu azul. Deus está sentado em seu trono de ouro, muito alto acima do mundo e, debaixo do trono, um enorme excremento cai sobre o teto novo e colorido da igreja; este se despedaça e os muros desabam. Então era isto! Senti um alívio imenso e uma liberação indescritível: em lugar da danação esperada, a graça descera sobre mim e com ela uma felicidade indizível, como jamais conhecera.

Tomara por regra de conduta os mandamentos da Bíblia, acreditando em Deus como a Bíblia exige e como seus pais o haviam ensinado. Mas não conhecia o Deus vivo, imediato, que se mantém livre e onipotente, acima da Bíblia e da Igreja, que chama o homem à sua liberdade e que também pode obrigá-lo a renunciar às próprias opiniões e convicções, a fim de cumprir sem reservas a Sua vontade.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 913-1005.

Anos de Colégio

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