“Esses são os processos psicológicos típicos que de- monstram como, aos poucos, o complexo do ego- centro do campo consciente – é formado nas crianças. Se se observam mais atentamente esses processos, através dos sonhos ver-se-á que eles brotam do SELF e que é o SELF que constrói o ego. Uma representação gráfica mostraria a totalidade psíquica desconhecida de um ser humano uma esfera e não um círculo – sendo a parte superior da esfera o campo da consciência; qualquer coisa neste campo é conhecida e o centro dele é o complexo do ego. Tudo o que não estiver ligado, por qualquer associação que seja, com o complexo do ego, é inconsciente. Antes desse campo da consciência existir, o centro regulador do SELF (o SELF é considerado como a totalidade e o centro regulador de toda personalidade, e parece estar presente desde o início da vida do indivíduo) constrói 0 complexo do ego através de certos processos emocionais ou outros. Estudando-se os simbolismos do complexo de ego e do SELF, observa-se que o ego tem as mesmas estruturas, e é, em grande parte, uma imagem espelhada do SELF. São bem conhecidas as representações do SELF nos mandalas, por exemplo, e o ego tem a mesma divisão quaternária que se vê no mandala. O centro do SELF vai progressivamente construindo o complexo do ego, que espelha este centro original e que, como todos sabem, frequentemente, sucumbe à ilusão de ser ele aquele centro. A maioria das pessoas que não são analisadas, naturalmente, acreditam (por suas convicções emocionais) em que Eu sou EU que EU sou tudo. E até esta ilusão ocorre pelo fato de o ego ter sido formado a partir do centro da totalidade. Mas na infância há a tragédia da separação; por exemplo, o evento típico de ser expulso do Paraíso, o primeiro choque de se ver incom-pleto e de descobrir que alguma coisa perfeita foi para sempre perdida. Tais tragédias espelham o momento em que o ego começa a tornar-se uma entidade à parte do SELF e a estabelecer-se como um fator com existência própria, perdendo-se parcialmente a conexão intuitiva com o centro.
Até onde se sabe, o ego funciona de maneira apro-priada somente quando ele consegue uma certa adapta-ção ao sistema psíquico. Isso significa que ele funciona melhor se uma certa plasticidade é conservada, ou seja, quando o ego não está petrificado ele pode, através dos sonhos, de humores etc., ser influenciado pelo SELF, adaptando-se, assim, a todo o sistema psíquico. É como se o ego significasse, pela própria natureza, ser, não um guia, mas um instrumento da totalidade do sistema psíquico, que funciona melhor quando responde às ne-cessidades básicas instintivas dessa totalidade e não quando resiste a elas.
Imagine-se, por exemplo, diante de uma situação perigosa em que o instinto o manda fugir (não é preciso ter um ego muito consciente para isso). Se um touro corre atrás de você, você não necessita consultar o seu ego; é muito melhor você consultar suas pernas que sabem o que fazer. Mas, se o ego funciona com suas pernas, então, enquanto você está fugindo do touro, você também está procurando um bom lugar para se esconder, ou uma cerca para pular, então a situação é perfeita: seus instintos e seu ego funcionam de acordo um com o outro. Se, por ou-tro lado, você for um filósofo cujas pernas querem correr, mas que pensa assim: “Pare, eu primeiro preciso pensar se é certo fugir do touro”, então o ego bloqueia a neces-sidade instintiva, tornando-se autonomo, anti-instintivo e destrutivo, tal como se observa em todo indivíduo neurótico. A neurose pode ser mesmo definida com um ego cuja estrutura não é mais capaz de se harmonizar com toda a personalidade. Se, pelo contrário, funciona de acordo com a totalidade da personalidade. essa o reforça deixando aparecer a sabedoria inata das estruturas instintivas básicas.
Konrad Lorenz deu-nos, uma vez, uma conferência com muitos exemplos desse tipo; eu me lembro de um sobre um pássaro que, para agradar sua companheira na época da acasalamento, produz um enorme saco vermelho no seu peito o qual lhe dá força para o canto de casamento. Este saco vermelho é tão pesado que ele não pode voar, então seus inimigos se juntam e atacam-no, trucidando-0. Como se vê, essa não é uma invenção muito boa! Um bonito rabo vermelho, ou um traseiro vermelho como o que tem o macaco babuíno seria bem melhor, pois o deixaria livre para voar se necessário. Pode-se observar, então, que os padrões instintivos nem sempre são positivos. Vamos imaginar que o lemingue pudesse se perguntar por que ele está agindo daquela maneira, pudesse refletir sobre a situação e perceber que ele não tem nenhuma vontade de se afogar e, ainda, que poderia voltar atrás; isso seria muito útil para ele. Essa talvez seja a razão do porquê da natureza inventar o ego como um novo instrumento para nós, nós somos um experimento novo na natureza, pois nós temos um instrumento adicional para regular os impulsos instintivos.
FRANZ, Marie-Louise von. A interpretação dos contos de fadas. São Paulo: Paulus, 2022, pág. 80-82.