Sonho de outubro de 1958

“Num sonho que tive em outubro de 1958, notei, de minha casa, dois discos de metal brilhante em forma de pequenas lentes; iam em direção ao lago, por sobre a casa, descrevendo um arco de fraca luz. Eram dois óvnis (objetos voadores não identificados). Em seguida, um outro corpo parecia dirigir-se para mim. Era uma pequena lente circular como a objetiva de um telescópio. A quatro ou cinco metros de distância, o objeto imobilizou-se por um instante, e em seguida desapareceu. Imediatamente após, um outro corpo chegou, atravessando os ares: uma pequena lente de objetiva com um prolongamento metálico que terminava numa caixa, uma espécie de lanterna mágica. A sessenta ou setenta metros de distância, parou no ar e me fitou. Acordei, tomado por um sentimento de espanto. Ainda no meio do sonho uma ideia me atravessou o espírito: “Sempre acreditamos que os óvnis fossem projeções nossas; ora, ao que parece, nós é que somos projeções deles. A lanterna mágica me projeta sob a forma de C.G. Jung, mas quem manipula o aparelho?”

Eu já sonhara certa vez sobre as relações entre o Si Mesmo e o eu. Nesse sonho de outrora eu caminhava por um atalho; atravessava uma região escarpada, o sol brilhava e tinha sob os olhos, à minha volta, um vasto panorama. Aproximei-me de uma capelinha, à beira do caminho. A porta estava entreaberta e entrei. Para meu grande espanto, não havia nenhuma estátua da Virgem nem crucifixo sobre o altar, mas simplesmente um arranjo floral magnífico. Diante do altar, no chão, vi, voltado para mim, um iogue na posição de lótus, profundamente recolhido. Olhando-o de mais perto, vi que ele tinha o meu rosto; fiquei estupefato e acordei, pensando: “Ah! Eis aquele que me medita. Ele sonha e esse sonho sou eu.” Eu sabia que quando ele despertasse eu não existiria mais.

Tive este sonho depois de minha doença em 1944. É uma parábola: meu Si Mesmo entra em meditação, por assim dizer, como um iogue e medita sobre minha forma terrestre. Poder-se-ia também dizer: ele toma a forma humana para vir à existência tridimensional, como alguém que veste um equipamento de mergulhador para lançar-se ao mar. O Si Mesmo, renunciando à existência no além, assume uma atitude religiosa, como também o indica a capela na imagem do sonho. Em sua forma terrestre pode fazer as experiências no mundo tridimensional e, com uma consciência acrescida, progredir no sentido de sua realização.

A personagem do iogue representava, de algum modo, minha totalidade pré-natal inconsciente e o Oriente longínquo — como acontece frequentemente nos sonhos — um estado psíquico oposto à consciência e que nos é estranho. Como a lanterna mágica, a meditação do iogue “projeta” também minha realidade empírica. Em geral, aprendemos esta conexão causal em sentido inverso: descobrimos nas produções do inconsciente símbolos de mandalas, isto é, figuras circulares ou quaternidades que exprimem a totalidade e, quando queremos exprimir a totalidade, utilizamos precisamente tais figuras. Nossa base é a consciência do eu, um campo numinoso que constitui nosso mundo e que está centrado num ponto focal: o eu. A partir deste ponto iluminado nosso olhar mergulha num mundo obscuro e enigmático e não saberíamos dizer em que medida os traços e as sombras que ali discernimos são criação de nossa consciência, ou em que proporção elas possuem uma realidade própria.

Uma observação superficial dá-se por satisfeita admitindo que a consciência cria essas sombras. Mas se olharmos mais de perto perceberemos que as imagens inconscientes não são em geral produtos do consciente, mas possuem sua própria realidade e espontaneidade. Apesar disso, nós as consideramos como espécies de fenômenos marginais. Os dois sonhos tendem à inversão total das conexões entre a consciência do eu e o inconsciente, fazendo do inconsciente o criador da pessoa empírica. A inversão indica que, na opinião do “outro lado em nós”, nossa existência inconsciente é a existência real e que o nosso mundo consciente é uma é a existência real e que o nosso mundo consciente é uma espécie de ilusão ou uma realidade aparente forjada em vista de um certo objetivo, à semelhança do sonho que parece ser real quando nele estamos mergulhados.

A totalidade inconsciente parece-me, pois, ser o verdadeiro spiritus rector de todo fenômeno biológico e psiquico.

A tomada de consciência é cultura no sentido mais vasto do termo, e, por conseguinte, o conhecimento de si mesmo é a essência e, o coração deste processo.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 5802-5835.

Sobre a vida depois da morte

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