Como o demônio não pode entrar

“Daí procede andar a alma escondida e livre, não só das suas potências, que não mais podem impedi-la com sua fraqueza natural, mas também do demônio; porque este inimigo, só por meio dessas potências sensitivas, pode alcançar e conhecer o que há na alma, ou o que nela se passa. Assim, quanto mais espiritual, interior e remota dos sentidos é a comunicação, tanto menos o demônio consegue entendê-la.

É, pois, muito importante para a segurança da alma que suas relações íntimas com Deus sejam de tal modo, que seus mesmos sentidos da parte inferior fiquem às escuras, privados deles, e não as percebam; primeiramente, para que a comunicação possa ser mais abundante, não impedindo a fraqueza da parte sensitiva à liberdade do espírito; depois, para que, conforme dissemos, vá a alma com mais segurança, não a alcançando o demônio, em tão íntimo recesso.

Sem dúvida, muitas vezes acontece à alma receber estas comunicações espirituais, sobremaneira íntimas e secretas, sem que o demônio chegue a conhecer quais são e como se passam; contudo pela grande pausa e silêncio causador nos sentidos e potências da parte sensitiva por algumas dessas comunicações, bem pode o inimigo perceber que existem, e que a alma recebe alguma graça de escol. Como ele vê que não consegue contradizê-la, pois tais coisas se passam no fundo da alma, procura por todos os meios alvoroçar e perturbar a parte sensitiva que está ao seu alcance. Provoca, então, aí, dores, ou aflige com sustos e receios, a fim de causar inquietação e desassossego na parte superior da alma, onde ela está recebendo e gozando aqueles bens.

Deus, na mesma medida e maneira em que vai conduzindo a alma e tratando com ela, permite também ao demônio ir agindo. Se a alma tem visões verdadeiras por meio do bom anjo, como ordinariamente acontece, – pois, embora apareça Cristo, quase nunca o faz em sua própria pessoa, e sim por este meio, – de modo semelhante, com permissão de Deus, o anjo mau lhe representa outras visões falsas no mesmo gênero. E assim, julgando pela aparência, pode a alma, se não tiver cautela, facilmente ser enganada, como já aconteceu a muitas.

Torna-se precisa, contudo, uma observação: quando o anjo bom permite ao demônio a vantagem de atingir a alma com este espiritual terror, visa purificá-la e dispô-la, com esta vigília espiritual, para alguma festa e mercê sobrenatural que lhe quer conceder Aquele que nunca mortifica senão para dar vida, e jamais humilha senão para exaltar. E isto se realiza pouco depois; a alma, na medida em que sofreu aquela purificação tenebrosa e horrível, goza, a seguir, de admirável e saborosa contemplação espiritual, por vezes tão sublime que não há linguagem para traduzi-la.

Quando Deus, porém, visita por Si mesmo à alma, então se realiza plenamente o verso já citado; porque de modo total, “às escuras, velada”, sem que a veja o demônio, recebe as mercês espirituais de Deus. A razão disto é a morada substancial de Sua Majestade na alma, onde nem o Anjo nem o demônio podem chegar a entender o que se passa. Consequentemente, não podem conhecer as íntimas e secretas comunicações que há entre ela e Deus.”

CRUZ, São João da. A noite escura da Alma. Editora Família Católica, 2018, versão Kindle, Posição: 2514-2595.