O livro Sagrado

“Na realidade, talvez o usuário que o anotou tenha seguido as instruções do cartomante, que recomendava a numeração e a nomeação de qualquer conjunto de 78 pedaços de papelão, fossem eles tarôs ou fragmentos recortados. Porém, em seguida, as menções à interpretação parecem ter seguido mais a inspiração de quem as escreveu. Também é possível ver que elas predominam nas imagens, que, de resto, parecem receber pouca consideração. Estamos muito distantes do apego contemporâneo à máxima “autenticidade” das imagens.

Esse tarô com menções divinatórias é uma raridade. Na realidade, durante todo o século XIX, o tarô seguiu um caminho diferente daquele da cartomancia: os ocultistas se apropriaram dele e escreveram muito a seu respeito. Transformado em livro sagrado,detentor de uma verdade oculta, foi com essa nova identidade que, em seguida, ele se voltou para as práticas divinatórias. O primeiro autor a tratar o tarô desse modo no século XIX foi Éliphas Lévi.”

NADOLNY, Isabelle. História do TarôUm estudo completo sobre suas origens, iconografia e simbolismo. Ed. Pensamento, 2022, pág. 178.

A fortuna das cartas

“A maioria das obras se dirigia a um público feminino, como diz de maneira graciosa esta introdução do Petit Oracle des dames [Pequeno Oráculo das Damas]: “Como o amor e a ternura deram origem à cartomancia, o acesso a ela deveria ocorrer, necessariamente, pelo belo sexo”. Alguns autores não hesitavam em assumir um pseudonimo feminino (o que era bastante raro nessa época e muito revelador da feminilização dessa prática!), como o já mencionado Simon Blocquel, que se fazia passar por uma sibila do faubourg Saint-Germain.

De outro lado, após Court de Gébelin, vemos surgir todo um movimento ocultista e especulativo em torno do tarô iniciático, de sua verdade e de qual ensinamento ele conteria que pudesse ser transmitido aos discípulos – um movimento cujos autores não necessariamente se interessam pelas “cartomantes” e até as consideram com certo desdém. Nesse caso, a busca da verdade e da sabedoria é uma questão de homens, de iniciados, de mestres e de magos.

Nesse contexto, o tarô se torna suporte para considerações ocultistas e filosóficas. Eliphas Levi, um dos primeiros a escrever sobre o caráter ocultista do tarô após Court de Gebelin, não fornece nenhuma indicação divinatória, contenta-se em especular longamente o “Livro de Hermes”. De resto, o eminente Papus escreve duas obras sobre o tarô, uma que o aborda em um sentido iniciático, esotérico”, Le Tarot des Bohémiens [O Tarô dos Boêmios] (1889), e outra sobre Le Tarot divinatoire [O Tarô Divinatório] (1909).”

NADOLNY, Isabelle. História do TarôUm estudo completo sobre suas origens, iconografia e simbolismo. Ed. Pensamento, 2022, pág. 169-170.

O inapreensível Alliette, vulgo Eteilla

“Na época que abordamos, outro homem além do conde de Mellet escreveu a respeito das cartas. Como dissemos, em 1770, Jean-Baptiste Alliette, vulgo Etteilla, já havia publicado Etteilla, ou Manière de se récréer avec un jeu de cartes, par M.*** [Etteilla, ou Modo de se Entreter com um Jogo de Cartas, por M.***], nada mais, nada menos do que o primeiro tratado de cartomancia de que se tem conhecimento.”

(…)

“Em todo caso, seus estudos deram frutos, pois ele pôde ampliar seu público “por meio de muita audácia, de grande habilidade e, sobretudo, de um modo de se expressar que lhe era particular. Mostrando-se sério e bastante taciturno, raramente concluía a frase que havia começado. Ora, essa maneira de ser, talvez ocasionada por problemas de dicção, ou seja, por fraqueza, passava aos olhos da maioria dos espectadores como prova de profundidade. Mas ele impressionava facilmente tão logo abordasse a questão dos números para estabelecer que não existe acaso nos acontecimentos e que tudo segue uma regra primordial e constante. Além disso, sustentava uma doutrina análoga à de Demócrito e Empedocles, discípulos de Pitágoras, que viam nos números os princípios das coisas. Etteilla sobressaía nos jogos matemáticos, nas combinações de algarismos”

(…)

No entanto, ele não era um mago barato, não se contentava com uma clientela de serviçais ou pessoas simples. É o que demonstram as tarifas que mandou publicar nos jornais da época para seus cursos e consultas: “Uma simples consulta com Etteilla era taxada em 3 libras, uma aula de sábia magia, 3 libras. As séries de horóscopos, jogo grande, médio ou pequeno, custavam respectivamente 100, 50 e 24 libras. Se os clientes, depois de conhecerem o horóscopo, quisessem receber informações complementares, seria necessário desembolsar mais 3 libras, ou 6 para questões adicionais. A explicação de um sonho chegava a 6 libras. Doze libras para ter o nome de seu Gênio, sua natureza, suas qualidades, sua força relativa à vida do consulente. A encomenda mais cara era a de um talismã capaz de proteger seu possuidor de um ou outro perigo: dependendo do poder do talismã, eram cobrados de 8 a 10 luíses. Melhor do que isso, Etteilla admitia assinantes por um preço fixo. Por 30 libras mensais, ele se encarregava de ser o médico espiritual da pessoa que a ele fizesse confidencias e mediante essa módica contribuição, o consulente teria quase certeza de que estaria livre de todas as maldades que pudessem ser causadas por um gênio mal-intencionado”.

O relator dessa informação conclui: “Como vemos. Etteilla foi um grande homem. Hábil, audacioso, astuto e com muita perícia, rapidamente adquiriu uma reputação universal. Para se ter uma ideia do valor das tarifas cobradas, vale lembrar o salário por jornada de trabalho de um artesão fabricante de cartas de jogos: de 18 a 20 sous por dia, sendo que 1 libra equivalia a cerca de 20 a 25 sous. Portanto, podemos considerar que, para uma consulta, um operário teria de desembolsar mais de três dias de salário…”

NADOLNY, Isabelle. História do TarôUm estudo completo sobre suas origens, iconografia e simbolismo. Ed. Pensamento, 2022, pág. 160-162.

A cartomancia

“(…) [Etteilla, ou Modo de se Entreter com um Jogo de Cartas, por M.***] (…)  só se torna um fervoroso “tarólogo” depois de descobrir o texto publicado por Antoine Court de Gébelin em 1781 sobre o tarô.

Podemos dizer que, até essas datas, a cartomancia era bastante rudimentar. Se algumas práticas eram difundidas, isso ocorria de maneira oral, sem referências nem formatações; as práticas que restaram eram populares e bastante difíceis de serem encontradas. Provavelmente as pessoas se divertiam nas feiras, lendo a sorte nas cartas. Tudo se acelerou na França de Luís XVI: a arte de ler as cartas e, mais tarde, os tarôs encontra seus dois primeiros autores, Court de Gébelin (1725-1784) e Jean-Baptiste Alliette (1738-1791).

NADOLNY, Isabelle. História do TarôUm estudo completo sobre suas origens, iconografia e simbolismo. Ed. Pensamento, 2022, pág. 144.

A adivinhação pelas cartas antes do século XVIII

“Mais acima, evocamos o Mainzer Kartenlosbuch [Livro de Cartomancia de Mainz), publicado em Mainz e datado de 1505 ou 1510, dependendo das fontes, que seria o primeiro livro conhecido a associar previsões e imagens de cartas.”

“(…) as fontes e os historiadores se contradizem quanto ao aparecimento da adivinhação pelas cartas. Dispomos de poucos elementos confiáveis para começar.”

“(…) há relatos de que, por volta dos anos 1450, Fernando de la Torre teria escrito que, com os naipes, os jogadores podiam – “prever o futuro uns dos outros, para saber de quem cada um gosta mais e quem é o mais desejado”. Essa seria a data mais antiga de uma conexão entre “prever o futuro” e as cartas de jogo (chamadas de “naipes” na Itália da época).”

NADOLNY, Isabelle. História do TarôUm estudo completo sobre suas origens, iconografia e simbolismo. Ed. Pensamento, 2022, pág. 143.