Verdadeira democracia

A “verdadeira democracia” (Foucault faz referência ao historiador grego Políbio) é guiada por dois princípios, o da isegoria e o da parrhesia. A isegoria diz respeito ao direito concedido a todo cidadão de se expressar livremente. A parrhesia, o dizer a verdade, pressupõe e exige a isegoria, mas excede o direito constitucional de tomar a palavra. Ela proporciona a determinados indivíduos “dizer o que pensam, o que assumem como verdadeiro, o que realmente assumem como verdadeiro”.

HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. Ed. Vozes, 2022, Local 873.

A crise da verdade

O novo niilismo

“A crise da verdade prolifera-se ali, onde a sociedade se desintegrou em agrupamentos ou tribos, entre as quais não é mais possível uma conciliação, uma designação vinculativa das coisas. Na crise da verdade, perde-se o mundo comum, a linguagem comum. A verdade é um regulador social, uma ideia regulativa da sociedade.

O novo niilismo é um sintoma da sociedade da informação. À verdade é inerente uma força centrípeta que mantém uma sociedade junta e coesa. A força centrífuga inerente às informações destrói a coesão social. O novo niilismo tem lugar no interior desse processo destrutivo, no qual o discurso também se desintegra em informações, levando à crise da democracia.”

HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. Ed. Vozes, 2022, Local 732-735.

A crise da verdade

Universo dataísta

“No universo dataísta, a democracia dá lugar a uma infocracia impulsionada por dados que se ocupam com a otimização da troca de informação. Análises de dados por meio da inteligência artificial substituem a esfera pública discursiva, o que significaria o fim da democracia.”

HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. Ed. Vozes, 2022, Local 674.

Racionalidade Digital

Tribalismo atual

No universo pós-factual das tribos digitais, a opinião não tem mais relação alguma com os fatos. Desse modo, prescinde de toda e qualquer racionalidade. Não é nem criticável, nem necessita de fundamentação. Quem se compromete com ela, contudo, recebe uma sensação de pertencimento. O discurso é substituído, portanto, pela crença e pelo voto de fé. Fora da área de cada tribo, então, há apenas inimigos – os outros, afinal – que devem ser combatidos.

O tribalismo atual, que pode ser observado não apenas na direita, mas também na política identitária de esquerda, divide e polariza a sociedade. Faz da identidade um escudo ou uma fortaleza que rechaça toda outridade. A tribalização progressiva da sociedade ameaça a democracia. Leva a uma ditadura da identidade e da opinião tribalista que carece de toda racionalidade comunicativa.

A comunicação tem se tornado hoje cada vez menos discursiva, à medida que lhe escapa cada vez mais a dimensão do outro. A sociedade decai em identidades inconciliáveis sem alteridade. Em vez do discurso, tem lugar uma guerra de identidades. A sociedade perde, com isso, o comum [Gemeinsame], o espírito público [Gemeinsinn].

Não ouvimos mais o outro de maneira atenta. Ouvir atentamente é um ato político, à medida que só com ele as pessoas formam uma comunidade e se tornam capazes de discursar. Ele promove um nós. A democracia é uma comunidade da escuta atenta.”

HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. Ed. Vozes, 2022, Local 522-531.

O fim da ação comunicativa

Autodoutrinação ou autopropaganda

“A personalização de resultados de busca e feed de notícias constitui apenas uma parcela pequena desse processo de desintegração. A autodoutrinação ou autopropaganda já existia offline. A atomização e a narcisização crescente da sociedade nos ensurdecem perante a voz do outro. Levam igualmente à perda da empatia. Hoje, cada um presta homenagem ao culto de si mesmo. Cada um perfoma e se produz. Não é a personalização algorítmica da rede, mas o desaparecimento do outro, a incapacidade de ouvir atentamente, que é responsável pela crise da democracia.”

HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. Ed. Vozes, 2022, Local 477.

O fim da ação comunicativa

Aparato de submissão

“A comunicação dirigida pelos algoritmos nas mídias sociais não é nem livre, nem democrática. Leva a uma nova interdição [Entmündigung]. O smartphone é uma coisa completamente diferente do parlamento móbil, é um aparato de submissão.”

HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. Ed. Vozes, 2022, Local 421.

O fim da ação comunicativa

A democracia é lenta, prolixa e tediosa

“A comunicação baseada em memes como contaminação viral dificulta o discurso racional ao mobilizar, mais do que nada, afetos.

(…)

A democracia é lenta, prolixa e tediosa. A propagação viral de informações, a infodemia, prejudica, assim, de modo massivo o processo democrático. Argumentos e fundamentações não cabem em tuítes ou memes que se propagam e multiplicam em velocidade viral.

Informações ultrapassam num piscar de olhos a verdade e esta não lhes pode alcançar. Está condenada ao fracasso, portanto, a tentativa de, com a verdade, querer lutar contra a infodemia. Esta é resistente à verdade.”

HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. Ed. Vozes, 2022, Local 378-386.

Infocracia

O avanço da digitalização do mundo

“A digitalização do mundo da vida avança, implacável. Submete a uma mudança radical nossa percepção, nossa relação com o mundo, nossa convivência. Ficamos atordoados pela embriaguez de comunicação e informação. O tsunami de informação desencadeia forças destrutivas. Abrange também, nesse meio-tempo, âmbitos políticos e leva a fraturas e disrupções massivas no processo democrático. A democracia degenera em infocracia.”

HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. Ed. Vozes, 2022, Local 214.

Infocracia

 

A Cruz e a Paz

“A cruz do Salvador do Mundo, apesar do comportamento dos seus sacerdotes, é um símbolo vastamente mais democrático do que a bandeira local.

A compreensão das implicações últimas –  e críticas –  das palavras e símbolos de redenção do mundo da tradição cristã foi de tal modo deturpada, ao longo dos tumultuosos séculos que nos separam da declaração de guerra – feita por Santo Agostinho – da Civitas Dei contra a Civitas Diaboli, que o pensador moderno, desejoso de saber o significado de uma religião mundial (isto é, de uma doutrina do amor universal) deve voltar-se para a outra grande (e muito mais antiga) comunhão universal: a comunhão do Buda, na qual a principal palavra é a paz – paz pra todos os seres.

Os seguintes versos tibetanos, por exemplo, de dois hinos do poeta-santo Milarepa, foram compostos mais ou menos na época em que o papa Urbano II pregava a Primeira Cruzada:

“No seio da Cidade da Ilusão dos Seus Planos do Mundo, O Principal fator é o pecado e a ignorância nascidos das más obras;

Ali, o ser seguido dita as preferências e aversões, E jamais chega o momento de conhecer a Igualdade: Evitai, ó filho meu, as preferências e aversões.

Se realizardes o Vazio de Todas as Coisas, a Compaixão surgirá em vossos corações;
Se abandonardes todas as diferenciações entre vós mesmos e os outros, sereis dignos de servir aos outros;

E quando, no serviço dos outros, encontrardes sucesso, a mim encontrareis;

E me encontrando, alcançareis a Condição de Buda.”

Campbell, Joseph. O herói de mil faces. Pensamento, São Paulo, 2007, p. 152-152.