O último ser humano

“Em todo lugar, o heroísmo dá lugar ao hedonismo.

O capitalismo se desenvolve, hoje, em um capitalismo da vigilância[99]. Vigilância gera capital. Somos permanentemente vigiados e conduzidos por plataformas digitais. Nossos pensamentos, sentimentos e intenções são lidos e explorados. A internet das coisas amplia a vigilância até a vida real. Os wearables entregam também nosso corpo ao acesso comercial. Somos conduzidos como marionetes por fios algorítmicos. O Big Data como instrumento biopolítico torna o comportamento humano prognosticável e controlável. A psicopolítica digital nos derruba em uma crise da liberdade.

Em The Hedonistic Imperative [O imperativo hedonista], o transhumanista David Pearce proclama um futuro livre de dor: “No curso dos próximos milênios as pressuposições biológicas do sofrimento serão inteiramente dissolvidas. ‘Dores corporais’ e ‘físicas’ estão destinadas, pela história da evolução, a desaparecer”. Também devem ser superadas as dores de amor, “as crueldades destruidoras da alma das formas tradicionais de amor” (the soul destroying cruelties of tradional modes of love). O objetivo do transhumanismo é uma “felicidade sublime que permeia a tudo” (a sublime and all-pervasive happiness). O transhumanismo também deixa o último ser humano para trás, pois ele é, assim diria Pearce, humano, demasiado humano. O tédio o atormenta extremamente. O transhumanismo considera que também o tédio pode ser eliminado com biotécnicas: “Mesmo que falte à humanidade por hora ainda a imaginação para tanto, já em algumas gerações a experiência do tédio será neurofisiologicamente impossível. ‘Contra o tédio, mesmo os deuses lutam em vão’, disse Nietzsche; ele, porém, ainda não tinha ideia das possibilidades da biotecnologia”.

A vida sem dor e com felicidade permanente não será mais uma vida humana. A vida que persegue e expulsa a sua dor suspende a si mesma. Morte e dor são inseparáveis. Na dor, antecipa-se a morte. Quem deseja eliminar toda dor também terá que acabar com a morte. Mas a vida sem morte e dor não é uma vida humana, mas sim morta-viva. O ser humano se desfaz, a fim de sobreviver. Ele alcançará, possivelmente, a imortalidade, mas ao custo de sua vida.”

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: A dor hoje. Ed. Vozes, 2021, Local, 988-1055.

O último ser humano

Independência da existência dos seres humanos

“Os rituais são na vida o que as coisas são no espaço. Para Hannah Arendt, é a conservação [Haltbarkeit] das coisas que outorga a elas uma “independência da existência dos seres humanos”. As coisas têm “a tarefa de estabilizar a vida humana”. Sua objetividade consiste em que “apresentem uma mesmidade humana […] à modificação torrencial da vida natural”, ou seja, apresentam uma identidade estabilizante “derivada do fato de que são a mesma cadeira e a mesma mesa que aguardam, com familiaridade permanente, os humanos que se modificam a cada dia”. As coisas são refúgios estabilizadores da vida. Os rituais têm a mesma função. Pela sua mesmidade, sua repetição, estabilizam a vida. Tornam a vida suportável [haltbar]. A coação atual de produção toma das coisas sua conservação. Ela destrói deliberadamente a duração com o intuito de produzir mais e de forçar mais o consumo. A permanência, contudo, pressupõe coisas que durem.

(…) conteúdos midiáticos, que apreendem nossa atenção, são qualquer outra coisa do que conteúdos propriamente ditos. Sua alternância rápida não nos permite permanecer.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 67-79.

Coação de produção

Era trans e pós-humano

“Estamos caminhando para uma era trans e pós-humana na qual a vida humana será um puro intercâmbio de informações. O ser humano está descartando sua condicionalidade, sua facticidade, que, no entanto, é o que faz dele o que ele é. Humano remete a húmus, ou seja, à terra.”

HAN, Byung-Chul. Não coisas: Reviravoltas do mundo da vida. Ed. Vozes, 2021, Local 1146.

A mão de Heidegger