“O primeiro é a falta de gosto ou consolo, não somente nas coisas divinas, mas também em coisa alguma criada.
O segundo sinal para que se creia tratar-se, de fato, de purificação sensitiva, é ter a alma lembrança muito contínua de Deus, com solicitude e cuidado aflito, imaginando que não O serve, mas antes volve atrás no divino serviço. Assim pensa, por causa do desgosto que sente nas coisas espirituais.
A parte sensitiva não tem habilidade para receber o que é puramente espiritual, e assim, quando o espírito goza, a carne se descontenta e relaxa para agir. Todavia a parte espiritual, que vai recebendo o alimento, cria novas forças, com maior atenção e vigilância do que antes tinha, na sua solicitude em não faltar a Deus.
Acostumado aos gostos sensíveis, o paladar espiritual ainda os deseja; não se acha suficientemente adaptado e purificado para tão finos deleites. Até que se vá dispondo pouco a pouco, por meio desta árida e escura noite, a sentir gosto e proveito espiritual, não pode experimentar senão secura e desabrimento, com a falta do sabor que antes encontrava com tanta facilidade.
Os que Deus começa a levar por estas solidões do deserto assemelham-se aos filhos de Israel quando recebiam, ali mesmo no deserto, o manjar celeste dado pelo Senhor, e no qual cada um achava o sabor apetecido, conforme diz a Escritura (Sab 16, 20-21). Contudo, não se contentavam, e era-lhes mais sensível a falta dos gostos e temperos das viandas e cebolas do Egito, – às quais já estava acostumado e satisfeito o seu paladar, – do que a delicada doçura do maná celeste. Donde, gemiam e suspiravam pelas viandas da terra, tendo os manjares do Céu. A tanto chega, pois, a baixeza de nosso apetite, que nos leva a desejar nossas misérias e ter fastio dos bens inefáveis do Céu.
Quando, porém, estas securas são causadas por estar o apetite sensível na via de purificação, mesmo que o espírito não sinta gosto algum no começo, pelas causas já declaradas, sente, no entanto, coragem e brio para agir, robustecido com a substância do manjar interior que o sustenta. Este alimento substancioso é princípio de contemplação obscura e árida para o sentido; porque esta contemplação é oculta e secreta àquele mesmo que a recebe. Junto com a secura e vazio na parte sensitiva, a alma geralmente experimenta desejo e inclinação para ficar sozinha e quieta, sem poder, – e nem mesmo querer, – pensar em coisa distinta. Se, então, os que se acham neste estado soubessem permanecer em sossego, descuidados de qualquer movimento interior e exterior, sem nenhuma preocupação de agir, logo, naquela calma e ócio, perceberiam a delicadeza daquela refeição íntima. É tão suave esse alimento que, de ordinário, se a alma procura ou deseja saboreá-lo, não lhe sente o gosto; porque, torno a dizer, produz seu efeito na maior quietação e ócio da alma. É semelhante ao ar: se o quisermos colher na mão, ele nos foge.
De tal maneira põe o Senhor a alma neste estado, e a conduz por tão diversa via, que, se ela quiser agir com suas potências, em vez de ajudar à obra de Deus em seu interior, antes a estorvará, pois agora tudo lhe sucede ao contrário do que anteriormente.
Tudo quanto a alma, neste tempo, pode fazer por si mesma, não serve, como já o dissemos, senão para perturbar a paz interior e a obra que Deus faz no espírito mediante aquela secura no sentido. Por ser espiritual e delicada, esta obra divida é em sua esta obra divina é, em sua realização, tranquila, suave, solitária, satisfatória e pacífica, e muito alheia a todos aqueles gostos do princípio, mui palpáveis e sensíveis. Com efeito, esta é a paz em que, segundo diz David (Sal 84, 9), Deus fala à alma para torná-la espiritual. Daqui procede a terceira condição.
O terceiro sinal que há para discernir a purificação do sentido é a impossibilidade, para a alma, por mais esforços que empregue nisso, de meditar e discorrer com o entendimento e com a ajuda da imaginação, como costumava fazer anteriormente. Deus aqui começa a comunicar-se não mais por meio do sentido, como o fazia até então, quando a alma O encontrava pelo trabalho do raciocínio, ligando ou dividindo os conhecimentos; agora Ele o faz puramente no espírito, onde não é mais possível haver discursos sucessivos. A comunicação é feita com um ato de simples contemplação, a que não chegam os sentidos interiores e exteriores da parte inferior. Por isto, a imaginação fantasia não podem apoiar-se em consideração alguma, nem doravante acha aí arrimo.”
CRUZ, São João da. A noite escura da Alma. Editora Família Católica, 2018, versão Kindle, Posição: 641-699.