Wotan e o diabo

“Foi sob a influência dos missionários cristãos que Wotan foi assimilado ao Diabo. Em si mesmo, é um deus significativo, um Mercúrio ou um Hermes, como os romanos discerniam claramente; é um espírito da natureza que ressurge na lenda do Graal sob os traços de Merlin e que, como spiritus mercurialis, constituía o arcano procurado pelos alquimistas.

(…)

De um lado um sentimento de calor e alegria, de outro, terror e luto, numa alternância contínua de contrastes afetivos. O contraste pode explicar-se: a morte era sentida, ora do ponto de vista do eu, ora do ponto de vista da alma. No primeiro caso ela parecia uma catástrofe, como se potências más e impiedosas tivessem aniquilado um ser humano.

É que a morte também é uma terrível brutalidade — nenhum engodo é possível! — não apenas enquanto acontecimento físico, mas ainda mais como um acontecimento psíquico: um ser humano é arrancado da vida e o que permanece é um silêncio mortal e gelado. Não há mais esperança de estabelecer qualquer relação: todas as pontes estão destruídas. Homens a quem se desejaria uma longa vida são ceifados na flor da idade, enquanto os inúteis atingem uma idade avançada. Eis uma cruel realidade que não se deveria dissimular. A brutalidade e a arbitrariedade da morte podem provocar no homem tal amargura que ele chega a descrer num Deus misericordioso, na justiça e na bondade.

Entretanto, se nos colocarmos diante de outro ponto de vista, a morte parece ser um acontecimento alegre. Sub specie aeternitatis, ela é um casamento, um mysterium coniunctionis (um mistério da união). A alma, pode-se dizer, alcança a metade que lhe falta, atinge a totalidade.

(…)

Este sonho dizia respeito a meu pai e me causou grande impressão: desde sua morte — em 1896 — jamais sonhara com ele e eis que me aparece num sonho, como se tivesse voltado de uma longa viagem. Parecia rejuvenescido e não manifestava qualquer autoridade paterna. Estava ao meu lado, em minha biblioteca, e eu me alegrava extraordinariamente por saber que ele chegara. Sentia-me particularmente feliz por lhe apresentar minha esposa, meus filhos, e contar-lhe tudo o que tinha feito mostrando-lhe o homem que me tornara. Queria também falar de meu livro Os tipos psicológicos, recentemente publicado, mas imediatamente notei que esses assuntos o importunavam porque parecia preocupado. Tinha o ar de quem esperava qualquer coisa. Eu percebi e por isso me mantive reservado. Disse-me então que por ser eu psicólogo gostaria de consultar-me sobre a psicologia do casamento. Dispunha-me a dissertar longamente a respeito das complicações da união conjugal, mas nesse momento acordei. Não pude compreender o sonho como deveria, pois não tive a ideia de que era preciso ligá-lo à morte da minha mãe. Só o compreendi quando ela morreu subitamente em janeiro de 1923.

O casamento de meus pais não fora uma união feliz, mas uma prova de paciência sobrecarregada de múltiplas dificuldades. Ambos cometeram os erros típicos comuns a numerosos casais. Meu sonho me deveria ter feito prever a morte de minha mãe; após uma ausência de 26 anos, meu pai, no sonho, informava-se junto a um psicólogo sobre conhecimentos e aquisições mais atuais concernentes às dificuldades do matrimônio, pois chegara para ele o tempo de retomar o problema. Em seu estado intemporal, não adquirira, evidentemente, nenhum saber novo e por isso dirigia-se a um vivo que, beneficiado com as mudanças trazidas pelo tempo, pudera adquirir novos pontos de vista.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 5639-5663.

Sobre a vida depois da morte

Gostei e vejo sentido em compartlhar essa ideiA

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