Secreto regresso ao matriarcado e ao materialismo

“Esse livro descreve um pequeno aspecto de uma lenta mudança que, em grande escala, aconteceu em toda a civilização cristã e a que poderíamos chamar um secreto regresso ao matriarcado e ao materialismo. Essa enantiodromia relaciona-se com o fato de que a religião judeu-cristã não enfrentou o arquétipo da mãe de modo suficientemente consciente. Em certa medida, ela havia excluído a questão. Também é sabido que, quando o Papa Pio XII declarou a assumptio Mariae, seu propósito consciente era atingir o materialismo comunista elevando, por assim dizer, um símbolo da matéria na Igreja Católica, de modo a tirar o vento das velas dos comunistas. Há uma implicação muito mais profunda, mas essa foi a sua ideia consciente, ou seja, a de que o único modo de combater o aspecto materialista seria erguendo a uma posição mais elevada o símbolo da Divindade feminina e com ele a matéria. Como é o corpo da Virgem Maria que se eleva ao Céu, a ênfase recai sobre o aspecto material e físico.

(…) Que a anima se perdeu no mundo material, porque ele não tinha relação com ela.

(…) Sim, devemos concluir que esse escritor não tinha antes qualquer relacionamento com o princípio feminino. Fica evidente pelo texto que ele era um clérigo, e eu diria que tinha um complexo maternal negativo; e por isso, ou por alguma outra razão, não tinha relação com o princípio feminino, o que significa: nem com o seu próprio lado feminino nem com mulheres. Nesse caso, haveria um influxo irresistível da Divindade feminina.

Há um paralelo impressionante no famoso místico Jacob Boehme, que era, como se sabe, um sapateiro muito pobre e um caso de fronteira, mas tinha as mais tremendas experiências religiosas e era capaz de expressá-las em seus dificeis escritos. Esse homem era um intuitivo introvertido do tipo profético. Seu casamento foi muito infeliz; havia apenas desprezo e ódio mútuos, compreensíveis de ambos os lados, pois sua esposa era uma mulher realista que achava que o marido devia empregar seu tempo em consertar sapatos e ganhar dinheiro, pois tinham seis filhos, em vez de escrever livros sobre o Espírito Santo enquanto a família nada tinha para comer. Assim, ela fazia cenas constantes, reclamando que Jakob devia prover a alimentação dos filhos e parar de escrever livros sobre a Divindade.

Jakob, por outro lado, sentia naturalmente que ela era uma mulher frivola e um peso para ele, alguém que tolhia sua criatividade espíritual. Era uma dessas tragédias clássicas. Boehme rejeitou completamente o feminino quer dizer, ele tinha apenas uma atitude negativa em relação ao feminino até as últimas fases da sua vida. Pouco antes de sua morte, porém, ele foi subitamente dominado pela imagem da Sabedoria de Deus, a Sophia, essa mesma imagem, e deixou um livro em que exaltava essa figura nos mais extasiados e amorosos termos a tal ponto que o texto chega a ser desagradável, porque um cunho sexual muito forte é visível em sua canção de amor à Sabedoria de Deus, e vemos toda a lama do que fora rejeitado vir caudalosamente à tona com essa grande experiência.

Presumo que o nosso autor está numa condição análoga, que não tinha relação alguma com o princípio feminino e foi então sobrepujado por ele em sua mais impressionante forma. Seria essa uma compensação típica para o desprezo e a desaprovação que devia ter sentido antes pelo feminino. Em tais casos, inconsciente irrompe com tão tremenda ênfase que é impossível continuar a evitá-lo

O que para a consciência é a concretização de uma imagem arquetípica, para a imagem arquetípica é uma queda, Imagine-se o ego com seu campo de associações, como uma aranha em sua teia. Quando a imagem arquetipica se acerca do campo da cons ciência, é para o ego uma condição de grande esclarecimento um estado de exultação etc., como vimos nos primeiros cinco capítulos do nosso texto; mas para o pobre arquétipo é justa mente o oposto, pois ele cai em algo muito pequeno e inades quado. Portanto, visto por um lado, é uma grande realização e por outro, uma queda muito grave.*

*Nota Pessoal: Édem

Muitos mitos de criação descrevem a criação do mundo como a queda da Divindade do Céu, como também é tipicamente ilustrado num sonho do poeta francês Gérard de Nerval, cujo livro Aurélia descreve o início da psicose de Nerval. Um dos mais terríveis sonhos que ele teve durante esse período foi o de que havia entrado no pátio dos fundos de um típico hotel de Paris, onde havia velhas latas de lixo onde alguns gatos comiam. Esses pátios sombrios podem ser encontrados em qualquer parte de Paris. Para seu horror, ele viu no pátio de seu hotel um anjo de Deus, uma tremenda e imponente figura arquetípica, com asas douradas, que havia caído entre as latas do lixo e estava espre-mido naquele espaço exiguo.

A súbita e assustadora percepção para o homem foi a de que, se o anjo quisesse se libertar, se fizesse o menor movimento, todo o edificio ruiria, o que significaria a eclosão de sua esquizofrenia, o que de fato ocorreu pouco depois. Sua concepção de vida era demasiado estreita em comparação com o seu gênio. Ele possuía um grande gênio inconsciente, como fica evidenciado pelo anjo, e seu conceito consciente de vida era exatamente o do típico racionalista de Paris, com seu pátio dos fundos. Sua mentalidade consciente não era adequada, portanto, para a sua cons-tituição real e seu próprio destino interior.

Com muita frequência, a razão para a esquizofrenia não é tanto a invasão do inconsciente, mas o fato de isso acontecer a alguém que é acanhado demais para a experiência, mental ou emocionalmente. As pessoas não dotadas de mentalidade aberta e tolerante, e que não têm suficiente generosidade e sensibilidade para abriř o coração para o que aparece, são explodidas pela invasão.”

 

VON FRANZ, Marie-Louise. Alquimia, Uma introdução ao simbolismo e seu significado na psicologia de Carl G. Jung, Ed. Cultrix 2022, Pág 353-357.

8a Palestra | Aurora Consurgens

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