Imitando a criança que se conduz pelos
passos dos benfeitores, cheguei à minha cidade,
com a sensação indescritível do viajante que torna ao berço natal depois de longa ausência.
Clarêncio abraçou-me e falou:
— VOCÊ TEM UMA SEMANA AO SEU DISPOR. Passarei aqui diariamente para revê-lo, atento aos cuidados que devo consagrar aos problemas da reencarnação de nossa irmã. Se quiser ir a Nosso Lar, aproveitará minha companhia. Passe bem, André!
Não me demorei a examinar pormenores.
Atravessei celeremente algumas ruas, a caminho de casa.
O coração me batia descompassado à medida que me aproximava do grande portão de entrada.
Ébrio de felicidade, avancei para o interior. TUDO, PORÉM, DENOTAVA DIFERENÇAS ENORMES. Onde estariam os velhos móveis de jacarandá? E o grande retrato onde, com a esposa e os filhinhos, formávamos gracioso grupo? Alguma coisa me oprimia ansiosamente. Que teria acontecido? Comecei a cambalear de emoção. Dirigi-me à sala de jantar, onde vi a filhinha mais nova, transformada em jovem casadoura. E, quase no mesmo instante, vi Zélia que saía do quarto, acompanhando um cavalheiro que me pareceu médico, à primeira vista.
Gritei minha alegria com toda a força dos pulmões, mas as palavras pareciam reboar pela casa sem atingir os ouvidos dos circunstantes. Compreendi a situação e calei-me, desapontado.
Todo o cuidado é pouco, o Dr. Ernesto reclama absoluto repouso.
Quem seria aquele Dr. Ernesto?
— MAS, DOUTOR, SALVE-O, POR CARIDADE! PEÇO-LHE! OH! NÃO SUPORTARIA UMA SEGUNDA VIUVEZ.
Zélia chorava e torcia as mãos, demonstrando imensa angústia.
Um corisco não me fulminaria com tamanha violência.
Outro homem se apossara do meu lar. A esposa me esquecera. A casa não mais me pertencia. Valia a pena ter esperado tanto para colher semelhantes desilusões?
No leito, estava um homem de idade madura, evidenciando melindroso estado de saúde. Ao lado dele, três figuras negras iam e vinham, mostrando-se interessadas em lhe agravar os padecimentos.
De pronto, tive ímpetos de odiar o intruso com todas as forças, mas já não era eu o mesmo homem de outros tempos.
Verifiquei que o doente estava cercado de entidades inferiores, devotadas ao mal; entretanto, não consegui auxiliá-lo imediatamente.
Assentei-me, decepcionado e acabrunhado, vendo Zélia entrar no aposento e dele sair, várias vezes, acariciando o enfermo com a ternura que me coubera noutros tempos, e, depois de algumas horas de amarga observação e meditação, voltei, cambaleante, à sala de jantar, onde encontrei as filhas conversando.
— Vim vê-los, mamãe — exclamou a primogênita —,
não só para colher notícias do Dr. Ernesto, como também porque, hoje, singulares saudades do papai me atormentam o coração. Desde cedo, não sei por que penso tanto nele. É uma coisa
que não sei bem definir…
Não terminou. Lágrimas abundantes borbotavam-lhe
dos olhos.
Aproximei-me da filha chorosa e estanquei-lhe o pranto, murmurando palavras de encorajamento e consolação, que ela não registrou auditiva, mas subjetivamente, sob a feição de pensamentos confortadores.
Afinal, via-me em face de singular conjuntura!
Compreendia, agora, o motivo pelo qual
meus verdadeiros amigos haviam procrastinado, tanto,
o meu retorno ao lar terreno.
Nem os longos anos de sofrimento, nos primeiros dias de Além-túmulo, me haviam proporcionado lágrimas tão amargas.
À tardinha, Clarêncio passou, oferecendo-me o cordial da sua palavra amiga e reta. Percebendo meu abatimento, disse solícito:
— Compreendo suas mágoas e rejubilo-me pela ótima oportunidade deste testemunho. Não tenho diretrizes novas. Qualquer conselho de minha parte, portanto, seria intempestivo. Apenas, meu caro, não posso esquecer que aquela recomendação de Jesus para que amemos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos opera sempre, quando seguida, verdadeiros milagres de felicidade e compreensão, em nossos caminhos.
(…)em face da realidade, absolutamente só no testemunho,
comecei a ponderar o alcance da recomendação evangélica
e refleti com mais serenidade.
(…)PRECISO ERA, POIS, LUTAR CONTRA
O EGOÍSMO FEROZ.
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XAVIER, Francisco Cândido / André Luiz. Nosso Lar. 1. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1944. Edição Kindle.
CAPÍTULO 49 | REGRESSANDO À CASA