A morte da mulher

“Mais tarde, tive ainda uma vez ocasião de viver esta objetividade: foi depois da morte de minha mulher. Ela me apareceu em sonho como se fosse uma visão. Postara-se a alguma distância e me olhava de frente. Estava na flor da idade, tinha cerca de trinta anos e trajava o vestido que minha prima, a médium, lhe fizera, talvez o mais belo que jamais usara. Seu rosto não estava alegre nem triste, mas expressava conhecimento e saber objetivos, sem a menor reação sentimental, além da perturbação dos afetos. Sabia que não era ela, mas uma imagem composta ou provocada por ela em minha intenção. Nessa imagem estava contido o início de nossas relações, os acontecimentos de nossos 53 anos de casamento e também o fim de sua vida. Diante de tal totalidade permanecemos mudos pois dificilmente podemos concebê-la. A objetividade vivida nesse sonho e nas visões pertence à individuação que se cumpriu.

(…)

Depois dessa doença começou um período de grande produtividade. Muitas de minhas obras principais surgiram então. O conhecimento ou a intuição do fim de todas as coisas deram-me a coragem de procurar novas formas de expressão. Não tentei mais impor meu próprio ponto de vista, mas submetia-me ao fluir dos pensamentos.

No início da doença sentia que minha atitude anterior tinha sido um erro e que eu próprio era de qualquer forma responsável pelo acidente. Mas quando seguimos o caminho da individuação, quando vivemos nossa vida, é preciso também aceitar o erro, sem o qual a vida não será completa: nada nos garante — em nenhum instante — que não possamos cair em erro ou em perigo mortal. Pensamos talvez que haja um caminho seguro; ora, esse seria o caminho dos mortos. Então nada mais acontece e em caso algum ocorre o que é exato. Quem segue o caminho seguro está como que morto.

(…) é importante aceitar o destino. Porque assim há um eu que não recua quando surge o incompreensível. Um eu que resiste, que suporta a verdade e que está à altura do mundo e do destino. Então uma derrota pode ser ao mesmo tempo uma vitória. Nada se perturba, nem dentro nem fora, porque nossa própria continuidade resistiu à torrente da vida e do tempo.”

 

JUNG, Carl Gustav. Memórias, sonhos, reflexões. Ed. Nova Fronteira, 2019, Local Kindle 5353-5374.

Visões

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