Rituais contém mundo

“Não ocorre depressão em uma sociedade determinada pelo ritual. A alma é totalmente absorvida, esvaziada, pelas formas rituais. Rituais contém mundo. Produzem uma relação forte com o mundo. Na origem da depressão, ao contrário, está uma relação consigo mesmo exageradamente tensa. Nela, se é incapaz de sair de si mesmo, de se ultrapassar em direção ao mundo, e acaba-se encapsulado em si mesmo. O mundo desaparece. Com uma angustiante sensação de vazio, circula-se apenas por si mesmo. Rituais, ao contrário, aliviam o eu do fardo de si mesmo. Eles despsicologizam e desinteriorizam o eu.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 213.

Coação de produção

Comunidade de ressonância

“Rituais criam uma comunidade de ressonância capaz de um acorde, de um ritmo comum: “Rituais promovem eixos de ressonância socioculturalmente estabelecidos, ao longo dos quais se tornam experienciáveis relações de ressonância verticais (com Deus, o cosmos, o tempo e a eternidade), horizontais (na comunidade social) e diagonais (em relação às coisas)”[11]. Sem ressonância, a gente ecoa a si mesmo e se isola para si. O narcisismo crescente impede a experiência de ressonância. A ressonância não é um eco de si mesmo. A ela é inerente a dimensão do outro. Significa acorde. A depressão se origina no ponto zero da ressonância. A crise atual da comunidade é uma crise de ressonância. A comunicação digital consiste de câmeras de eco nas quais antes do que nada se ouve apenas a si mesmo falando. Likes, Friends e Followers não formam corpos de ressonância. Apenas aprofundam o eco de si mesmo.

Rituais são processos de incorporação, encenações do corpo. Os regimes válidos e os valores de uma comunidade são experienciados corporalmente e sedimentados. São inscritos no corpo, incorporados, ou seja, internalizados corporalmente. Desse modo, os rituais criam um saber e uma memória corporalizados, uma identidade corporalizada, uma comunhão corporal. A comunidade ritual é uma corporação. À comunidade como tal é inerente uma dimensão corporal. A digitalização enfraquece em tal medida o vínculo comunitário que surge dela um efeito descorporizante. A comunicação digital é uma comunicação descorporizada.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 167-175.

Coação de produção

A perda da capacidade de repetição

“À caça por novos estímulos, excitações e vivências, perdemos hoje a capacidade de repetição. Aos dispositivos neoliberais como autenticidade, inovação ou criatividade é inerente uma coação permanente ao novo. Eles produzem, contudo, ao fim e ao cabo, apenas variações do igual.
Para escapar da rotina, do vazio, consumimos ainda mais coisas novas, novos estímulos e vivências. Justamente a sensação de vazio impulsiona a comunicação e o consumo.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 157-163.

Coação de produção

Repetição

“Eu posso repetir apenas o que está privado de evento, e nisso, contudo, algo me alegra no canto do olho (a luz do dia, ou o crepúsculo); mesmo um pôr-do-sol já é um evento e irrepetível; com efeito, não posso repetir sequer uma vez uma determinada luz, ou um crepúsculo, mas apenas um caminho (e, nele, devo ter cuidado com todas as pedras, mesmo as novas)”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 153.

Coação de produção

A repetição é a característica essencial do ritual

“A percepção serial é extensiva, enquanto a percepção simbólica é intensiva. Dada sua extensão, sua atenção é rasa. A intensidade dá lugar hoje, em toda parte, à extensão. A comunicação digital é uma comunicação extensiva. Ela não produz relações, mas conexões.

O regime neoliberal acelera a percepção serial, aumenta o hábito serial. Elimina deliberadamente a duração para obter mais consumo. O update constante que compreende nesse ínterim todos os âmbitos da vida, não permite a duração, um término. A coação permanente da produção leva a um desencasamento. A vida se torna, com isso, mais contingente, mais efêmera, e instável. Habitar, contudo, requer duração.
O transtorno de déficit de atenção é resultado de um recrudescimento patológico da experiência serial. A experiência nunca repousa. Desaprendeu a permanecer. A atenção profunda como técnica cultural se forma justamente pelas práticas rituais e religiosas. Religião não provém por acaso de relegere, prestar atenção. Toda práxis religiosa é um exercício de atenção. O templo é um lugar de atenção profunda. A atenção é, segundo Malebranche, a reza natural da alma. Hoje, a alma não reza. Ela se produz continuamente.
Memorizar se chama em francês apprendre par cœur. Apenas a repetição alcança manifestamente o coração.
A repetição é a característica essencial do ritual. Ela se distingue da rotina pela sua capacidade de produzir uma intensidade.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 122-138.

Coação de produção

Valores como objetos de consumo individual

“Os valores também servem hoje como objetos de consumo individual. Tornaram-se eles mesmos mercadoria. Valores como justiça, humanidade ou sustentabilidade são explorados economicamente. “Mudar o mundo bebendo chá” é o slogan de uma empresa fair trade. Mudar o mundo pelo consumo seria o fim da revolução. Sapatos ou roupas também precisam ser veganos. Em breve certamente haverá smartphones veganos. O neoliberalismo se aproveita multiplamente da moral. Valores morais são consumidos como características distintivas. São contabilizados na conta do ego, elevando o valor do ego. Aumentam a autoestima narcísica. Com valores, não se está referindo à comunidade, mas ao próprio ego.
Com o símbolo, como a téssera hospitalis, os amigos hóspedes selam sua aliança. A palavra symbolon está situada no horizonte de significado da relação, totalidade e salvação. Segundo o mito contado por Aristófanes no diálogo Banquete de Platão, os humanos eram originalmente um ser esférico com duas faces e quatro pernas. Por ser arrogante, Zeus o dividiu em duas metades para os enfraquecer. Desde então os humanos são um symbolon que anseia pela suas outras metades, por uma totalidade salvadora. É assim que juntar em grego se chama symbállein. Rituais são, nessa medida, também uma práxis simbólica, uma práxis do symbállein, ao reunirem as pessoas produzindo aliança, uma totalidade, uma comunidade.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 96-102.

Coação de produção

Independência da existência dos seres humanos

“Os rituais são na vida o que as coisas são no espaço. Para Hannah Arendt, é a conservação [Haltbarkeit] das coisas que outorga a elas uma “independência da existência dos seres humanos”. As coisas têm “a tarefa de estabilizar a vida humana”. Sua objetividade consiste em que “apresentem uma mesmidade humana […] à modificação torrencial da vida natural”, ou seja, apresentam uma identidade estabilizante “derivada do fato de que são a mesma cadeira e a mesma mesa que aguardam, com familiaridade permanente, os humanos que se modificam a cada dia”. As coisas são refúgios estabilizadores da vida. Os rituais têm a mesma função. Pela sua mesmidade, sua repetição, estabilizam a vida. Tornam a vida suportável [haltbar]. A coação atual de produção toma das coisas sua conservação. Ela destrói deliberadamente a duração com o intuito de produzir mais e de forçar mais o consumo. A permanência, contudo, pressupõe coisas que durem.

(…) conteúdos midiáticos, que apreendem nossa atenção, são qualquer outra coisa do que conteúdos propriamente ditos. Sua alternância rápida não nos permite permanecer.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 67-79.

Coação de produção

A falta da estrutura firme

“Ao tempo falta hoje a estrutura firme. Ele não é uma casa, mas um fluxo volúvel. Desintegra-se em mera sucessão de presentes pontuais. Ele se esvai. Nada lhe dá uma parada [Halt]. O tempo que se esvai não é habitável.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 64.

Coação de produção

Percepção simbólica

“A percepção simbólica, na condição de reconhecimento, percebe o permanente. O mundo é, desse modo, liberado de sua contingência e ganha algo permanente. O mundo hoje está muito desprovido de simbólico. Dados e informações não possuem força simbólica. Assim, não admite reconhecimento. No vazio simbólico, todas as imagens e metáforas que provocam sentido e comunidade e que estabilizam a vida têm se perdido. A experiência da duração tem diminuindo. E a contingência aumenta radicalmente.

Rituais podem ser definidos como técnicas simbólicas de encasamento. Transformam o estar-no-mundo em um estar-em-casa. Fazem do mundo um local confiável. São no tempo o que uma habitação é no espaço. Fazem o tempo se tornar habitável. Sim, fazem-no viável como uma casa. Ordenam o tempo, mobiliam-no.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 53-56.

Coação de produção