O processo da evolução cultural

“(…)desde tempos imemoriais, desenvolve-se na Humanidade o processo da evolução cultural. (Sei que outros preferem chamar-lhe «civilização».) A este processo devemos o melhor que de nós fizemos, e também uma boa parte do que sofremos. (…) As modificações psíquicas que acompanham a evolução cultural são notáveis e inequívocas. Consistem numa progressiva deslocação dos fins das pulsões e numa crescente restrição das tendências pulsionais.(…). Entre os carateres psicológicos da cultura, há dois que parecem ser os mais importantes: o fortalecimento do intelecto, que começa a dominar a vida pulsional, e a interiorização das tendências agressivas, com todas as suas consequências vantajosas e perigosas.

(…) tudo o que fomente a evolução cultural atua contra a guerra.”

FREUD, Sigmund. Porquê a Guerra? – Reflexões sobre o destino do mundo, Ed. Edições 70, 2019, pág.74-75.

Reflexões a dois sobre o destino do mundo (1932)

“Carta de Freud a Einstein”

Dotados de pensamento autônomo

“Deveria aqui acrescentar-se que importa empenhar- se mais em educar uma camada superior de homens dotados de pensamento autônomo, inacessíveis à intimidação, que lutem pela verdade e aos quais incumba a direção das massas dependentes. Não é preciso demonstrar que os abusos dos poderes do Estado e a censura do pensamento pela Igreja de nenhum modo podem favorecer esta educação. A situação ideal, claro está, seria a de uma comunidade de homens que tivessem submetido a sua vida pulsional à ditadura da razão.”

FREUD, Sigmund. Porquê a Guerra? – Reflexões sobre o destino do mundo, Ed. Edições 70, 2019, pág. 72.

Reflexões a dois sobre o destino do mundo (1932)

“Carta de Freud a Einstein”

A pulsão de agressão ou de destruição

“Supomos que as pulsões do homem são apenas de dois tipos: umas que tendem a conservar e a unir denominamo-las «eróticas», inteiramente no sentido do Eros do Banquete platónico, ou «sexuais», ampliando deliberadamente o conceito popular da sexualidade, e outras que tendem a destruir e a matar: concebemo-las como a pulsão de agressão ou de destruição. Como o senhor adverte, trata-se apenas de uma transfiguração teórica da antítese entre o amor e o ódio, universalmente conhecida e talvez relacionada primordialmente com a que existe entre atração e repulsão, que desempenha um papel no seu campo científico. Não nos apressemos a introduzir aqui os conceitos valorativos de «bom» e «mau». Qualquer uma destas pulsões é tão imprescindível como a outra, e da sua ação conjunta e antagônica brotam as manifestações da vida.”

FREUD, Sigmund. Porquê a Guerra? – Reflexões sobre o destino do mundo, Ed. Edições 70, 2019, pág.69.

Reflexões a dois sobre o destino do mundo (1932)

“Carta de Freud a Einstein”

A paz por meio da guerra?

“(…) outras, pelo contrário, contribuíram para a transformação da violência em direito, ao estabelecerem maiores entidades em cujo seio foi eliminada a possibilidade do uso da violência (…). Assim, as conquistas dos Romanos legaram a preciosa pax romana aos povos mediterrânicos. O gosto da expansão dos reis franceses criou uma França pacificamente unida e próspera. Embora se afigure paradoxal, deve admitir-se que a guerra poderia ser um meio apropriado para estabelecer a anelada «paz eterna», já que é capaz de criar unidades tão grandes que um forte poder central torna impossíveis outras guerras. Mas, na realidade, a guerra não serve para tal fim, pois os resultados da conquista não costumam ser duradoiros; as novas unidades criadas voltam geralmente a desmembrar-se, por causa da escassa coesão entre as partes unidas à força.

Aplicando as minhas reflexões à atualidade, chego ao mesmo resultado que o senhor alcançou por um caminho mais curto.” 

FREUD, Sigmund. Porquê a Guerra? – Reflexões sobre o destino do mundo, Ed. Edições 70, 2019, pág. 67.

Reflexões a dois sobre o destino do mundo (1932)

“Carta de Freud a Einstein”

A violência é vencida pela união

“(…)um caminho levou da força ao direito, mas qual? A meu ver, só podia ter sido um: o que passava pelo facto de a força maior de um indivíduo poder ser compensada pela associação de vários mais débeis. L’union fait la force. A violência é vencida pela união, o poder dos unidos representa agora o direito, em oposição à força do indivíduo isolado. Vemos, pois, que o direito é o poder de uma comunidade. Continua a ser uma força disposta a dirigir-se contra qualquer indivíduo que se lhe contraponha; opera com os mesmos meios, persegue os mesmos fins; na realidade, a diferença reside apenas em que já não é o poder de um indivíduo a impor-se, mas o da comunidade.

(…) a diferença reside apenas em que já não é o poder de um indivíduo a impor-se, mas o da comunidade.

Com isto, penso eu, já temos o essencial: a superação da violência pela transferência do poder para uma unidade mais ampla, mantida pelos vínculos afetivos dos seus membros. (…) As leis desta associação determinam então em que medida o individuo há de renunciar à liberdade pessoal de exercer violentamente a sua força, para que seja possível uma convivência segura.

(…)

Há ainda uma outra fonte de transformação jurídica, que se manifesta apenas de forma pacífica: é o desenvolvimento cultural dos membros da entidade coletiva, mas esta pertence a um contexto que só mais tarde será abordado.”

FREUD, Sigmund. Porquê a Guerra? – Reflexões sobre o destino do mundo, Ed. Edições 70, 2019, pág.65-66.

Reflexões a dois sobre o destino do mundo (1932)

“Carta de Freud a Einstein”

A relação entre direito e poder

“Mas compreendi logo que me tinha feito a pergunta, não como investigador da natureza e físico, mas como amigo da humanidade, respondendo ao convite da Sociedade das Nações (…)

Começa com a relação entre direito e poder (…).

Os conflitos de interesses entre os homens são, em princípio, solucionados mediante o recurso à força. Assim acontece em todo o reino animal, do qual o homem não se deveria excluir; mas, no caso deste, acrescentam-se ainda conflitos de opiniões que atingem as maiores alturas da abstração e parecem exigir uma outra técnica para a sua solução. Mas isto é só uma complicação relativamente recente. Inicialmente, na pequena horda humana, a maior força muscular era a que decidia a quem deveria pertencer alguma coisa, ou a vontade que se deveria levar a cabo. A força muscular cedo é reforçada e substituída pelo uso de instrumentos; vence quem possui as melhores armas ou as emprega com maior habilidade. Com a introdução das armas, a superioridade intelectual começa já a ocupar o lugar da força muscular bruta, mas o objetivo final da luta persiste o mesmo: pelo dano que se lhe inflige ou pela aniquilação das suas forças, uma das partes em litígio é obrigada a abandonar as suas pretensões ou a sua posição.”

FREUD, Sigmund. Porquê a Guerra? – Reflexões sobre o destino do mundo, Ed. Edições 70, 2019, pág.63-64.

Reflexões a dois sobre o destino do mundo (1932)

“Carta de Freud a Einstein”

O prazer de odiar e de destruir

“(…) A sede de poder da classe dominante é em cada Estado contrária a qualquer limitação da soberania nacional. Este desmedido desejo de poder político concilia-se com os objetivos de quem procura somente vantagens mercenárias e econômicas.

(…) Uma resposta óbvia a esta questão seria a de que a minoria daqueles que, de vez em quando, detêm o poder, tem nas mãos, primeiro de tudo, a escola e a imprensa e, na maior parte dos casos, também as organizações religiosas. Isto é, é-lhes permitido organizar e desviar os sentimentos das massas, tornando-as instrumentos da própria política.

(…)como é possível que as massas se deixem inflamar pelos meios referidos, até ao holocausto de si próprias? Impõe-se uma única resposta: é porque o homem tem dentro de si o prazer de odiar e de destruir.

(…)

Existe a possibilidade de dirigir a evolução psíquica dos homens de modo a tornarem-se capazes de resistir às psicoses do ódio e da destruição?”

FREUD, Sigmund. Porquê a Guerra? – Reflexões sobre o destino do mundo, Ed. Edições 70, 2019, pág.61-62.

Reflexões a dois sobre o destino do mundo (1932)

“Carta de Einstein a Freud”

Uma maneira de libertar os homens da guerra

“A proposta que me foi feita pela Sociedade das Nações e pelo seu Instituto Internacional de Cooperação Intelectual de Paris, de convidar uma pessoa de minha escolha para uma troca franca de opiniões sobre um problema qualquer também escolhido por mim, oferece-me a feliz oportunidade de dialogar consigo em torno de uma pergunta que parece, na presente condição do mundo, ser a mais urgente entre todas aquelas que se põem à civilização. A pergunta é: existe uma maneira de libertar os homens da fatalidade da guerra?

Penso também que aqueles a quem compete encarar o problema profissional e praticamente, tornam-se dia a dia mais conscientes da sua impotência, e têm hoje um vivo desejo de conhecer as opiniões de pessoas absorvidas pela pesquisa científica, as quais por isso mesmo estão em condições de observar os problemas do mundo om suficiente distanciamento. Quanto a mim, o objetivo para o qual se dirige habitualmente o meu pensamento não me ajuda a discernir os obscuros recessos da vontade e do sentimento humano.

Sendo imune a sentimentos nacionalistas, vejo pessoalmente uma maneira simples de enfrentar o aspeto exterior, isto é organizativo, do problema: os Estados criam uma autoridade legislativa e judicial com o mandato de conciliar todos os conflitos que surjam entre eles. Cada Estado assume a obrigação de respeitar os decretos desta autoridade, de invocar as suas decisões em cada contenda, de acatar sem reserva o seu julgamento e de pôr em prática todas as medidas que forem julgadas necessárias para fazer aplicar as próprias resoluções. (…)  Existe aqui uma realidade da qual não podemos prescindir: direito e força são inseparáveis e as decisões do direito aproximam-se da justiça, à qual aspira a comunidade em cujo nome e interesse são pronunciadas as sentenças, somente na medida em que essa comunidade tem o poder efetivo de impor o respeito do próprio ideal legalitário. (…) Chego assim ao meu primeiro axioma: a procura da segurança internacional implica que cada Estado renuncie incondicionalmente a uma parte da sua liberdade de ação, o que equivale a dizer à soberania (…)”

FREUD, Sigmund. Porquê a Guerra? – Reflexões sobre o destino do mundo, Ed. Edições 70, 2019, pág.59-60.

Reflexões a dois sobre o destino do mundo (1932)

“Carta de Einstein a Freud”

A guerra e os espíritos malignos em nós

“A guerra enlameou a nossa excelsa equanimidade científica, patenteou na sua crua nudez a nossa vida pulsional, soltou os espíritos malignos que em nós habitam e que supúnhamos definitivamente dominados pelos nossos impulsos mais nobres, graças a uma educação multissecular.”

FREUD, Sigmund. Porquê a Guerra? – Reflexões sobre o destino do mundo, Ed. Edições 70, 2019, pág.55.

Caducidade (1915)

Toda beleza efemera

“A ideia de que toda esta beleza seria efemera suscitou em ambos, tão sensíveis, uma sensação antecipada da aflição que lhes ocasionaria o seu aniquilamento, e uma vez que a alma se afasta instintivamente de tudo o que é doloroso, estas pessoas viram inibido o seu gozo do belo pela ideia da sua indole perecível.

Imaginamos assim possuir uma certa capacidade amorosa no começo da evolução, se orientou para o próprio Eu, para mais tarde embora, na realidade, muito precocemente se dirigir para os objetos, que desta sorte ficam de certo modo incluídos no nosso eu. Se os objetos são destruídos ou se os perdemos, a nossa capacidade amorosa (libido) volta a ficar em liberdade, e pode tomar outros objetos como substitutos, ou regressar transitoriamente ao eu. Todavia, não conseguimos explicar nem podemos a tal respeito aventar hipótese alguma porque é que o desprendimento da libido dos seus objetos tem de ser, necessariamente, um processo tão doloroso. Comprovamos apenas que a libido se aferra aos seus objetos e que nem sequer quando já dispõe de novos sucedâneos se resigna a desprender-se dos objetos que perdeu. Eis aqui, pois, a pena.”

FREUD, Sigmund. Porquê a Guerra? – Reflexões sobre o destino do mundo, Ed. Edições 70, 2019, pág.54-55.

Caducidade (1915)