A violência é vencida pela união

“(…)um caminho levou da força ao direito, mas qual? A meu ver, só podia ter sido um: o que passava pelo facto de a força maior de um indivíduo poder ser compensada pela associação de vários mais débeis. L’union fait la force. A violência é vencida pela união, o poder dos unidos representa agora o direito, em oposição à força do indivíduo isolado. Vemos, pois, que o direito é o poder de uma comunidade. Continua a ser uma força disposta a dirigir-se contra qualquer indivíduo que se lhe contraponha; opera com os mesmos meios, persegue os mesmos fins; na realidade, a diferença reside apenas em que já não é o poder de um indivíduo a impor-se, mas o da comunidade.

(…) a diferença reside apenas em que já não é o poder de um indivíduo a impor-se, mas o da comunidade.

Com isto, penso eu, já temos o essencial: a superação da violência pela transferência do poder para uma unidade mais ampla, mantida pelos vínculos afetivos dos seus membros. (…) As leis desta associação determinam então em que medida o individuo há de renunciar à liberdade pessoal de exercer violentamente a sua força, para que seja possível uma convivência segura.

(…)

Há ainda uma outra fonte de transformação jurídica, que se manifesta apenas de forma pacífica: é o desenvolvimento cultural dos membros da entidade coletiva, mas esta pertence a um contexto que só mais tarde será abordado.”

FREUD, Sigmund. Porquê a Guerra? – Reflexões sobre o destino do mundo, Ed. Edições 70, 2019, pág.65-66.

Reflexões a dois sobre o destino do mundo (1932)

“Carta de Freud a Einstein”

Comunidade de ressonância

“Rituais criam uma comunidade de ressonância capaz de um acorde, de um ritmo comum: “Rituais promovem eixos de ressonância socioculturalmente estabelecidos, ao longo dos quais se tornam experienciáveis relações de ressonância verticais (com Deus, o cosmos, o tempo e a eternidade), horizontais (na comunidade social) e diagonais (em relação às coisas)”[11]. Sem ressonância, a gente ecoa a si mesmo e se isola para si. O narcisismo crescente impede a experiência de ressonância. A ressonância não é um eco de si mesmo. A ela é inerente a dimensão do outro. Significa acorde. A depressão se origina no ponto zero da ressonância. A crise atual da comunidade é uma crise de ressonância. A comunicação digital consiste de câmeras de eco nas quais antes do que nada se ouve apenas a si mesmo falando. Likes, Friends e Followers não formam corpos de ressonância. Apenas aprofundam o eco de si mesmo.

Rituais são processos de incorporação, encenações do corpo. Os regimes válidos e os valores de uma comunidade são experienciados corporalmente e sedimentados. São inscritos no corpo, incorporados, ou seja, internalizados corporalmente. Desse modo, os rituais criam um saber e uma memória corporalizados, uma identidade corporalizada, uma comunhão corporal. A comunidade ritual é uma corporação. À comunidade como tal é inerente uma dimensão corporal. A digitalização enfraquece em tal medida o vínculo comunitário que surge dela um efeito descorporizante. A comunicação digital é uma comunicação descorporizada.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 167-175.

Coação de produção

Rituais são ações simbólicas

“Rituais são ações simbólicas. Transmitem e representam todos os valores e ordenamentos que portam uma comunidade. Geram uma comunidade sem comunicação, enquanto hoje predomina uma comunicação sem comunidade.

A percepção simbólica é constitutiva dos rituais. O símbolo (em grego, symbolon) significa originalmente o sinal de reconhecimento entre amizades hóspedes (tessera hospitalis). Um dos amigos quebra a téssera, guardando para si uma metade e dá ao outro amigo a outra como sinal de hospitalidade. O símbolo serve, assim, ao reconhecimento.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 43-45.

Coação de produção

Os rituais

“Os rituais não assinalam, no presente ensaio, um local de saudosismo. Servem, ao contrário, como contraponto perante o qual nosso presente se delineia de modo mais nítido. É sem nostalgia que se esboçará uma genealogia do desaparecimento que, não obstante, não será interpretada como história da emancipação. Ao decorrer disso, serão delineadas patologias do presente, sobretudo a erosão da comunidade.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 38.

Observação prévia

Perda de empatia na era digital

“A comunidade tem uma dimensão física. Já por causa da falta de fisicalidade, a comunicação digital enfraquece a comunidade. O olhar também solidifica a comunidade. A digitalização faz o outro desaparecer como mirada. A ausência do olhar é corresponsável pela perda de empatia na era digital.

No olhar da mãe que a criança encontra apoio, autoafirmação e comunidade. O olhar constrói a confiança fundamental. A falta do olhar leva a uma relação perturbada consigo mesmo e com os outros.”

HAN, Byung-Chul. Não coisas: Reviravoltas do mundo da vida. Ed. Vozes, 2021, Local 389-391.

Smarthphone

A cultura tem sua origem na comunidade

“A cultura tem sua origem na comunidade. Ela transmite valores simbólicos que compõem uma comunidade. Quanto mais a cultura se torna uma mercadoria, mais ela se afasta de sua origem. A comercialização total e a mercantilização da cultura resultam na destruição da comunidade. A “comunidade” frequentemente invocada nas plataformas digitais é uma forma de comunidade comoditizada. A comunidade como mercadoria é o seu fim.”

HAN, Byung-Chul. Não coisas: Reviravoltas do mundo da vida. Ed. Vozes, 2021, Local 340.

Da posse à vivência

Tribalismo atual

No universo pós-factual das tribos digitais, a opinião não tem mais relação alguma com os fatos. Desse modo, prescinde de toda e qualquer racionalidade. Não é nem criticável, nem necessita de fundamentação. Quem se compromete com ela, contudo, recebe uma sensação de pertencimento. O discurso é substituído, portanto, pela crença e pelo voto de fé. Fora da área de cada tribo, então, há apenas inimigos – os outros, afinal – que devem ser combatidos.

O tribalismo atual, que pode ser observado não apenas na direita, mas também na política identitária de esquerda, divide e polariza a sociedade. Faz da identidade um escudo ou uma fortaleza que rechaça toda outridade. A tribalização progressiva da sociedade ameaça a democracia. Leva a uma ditadura da identidade e da opinião tribalista que carece de toda racionalidade comunicativa.

A comunicação tem se tornado hoje cada vez menos discursiva, à medida que lhe escapa cada vez mais a dimensão do outro. A sociedade decai em identidades inconciliáveis sem alteridade. Em vez do discurso, tem lugar uma guerra de identidades. A sociedade perde, com isso, o comum [Gemeinsame], o espírito público [Gemeinsinn].

Não ouvimos mais o outro de maneira atenta. Ouvir atentamente é um ato político, à medida que só com ele as pessoas formam uma comunidade e se tornam capazes de discursar. Ele promove um nós. A democracia é uma comunidade da escuta atenta.”

HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. Ed. Vozes, 2022, Local 522-531.

O fim da ação comunicativa

Plano simbólico

“O mundo atual é muito pobre com respeito a um plano simbólico apto a estabilizar eixos temporais. A percepção simbólica como reconhecimento vislumbra o duradouro. Repetições aprofundam o ser. A percepção simbólica é livre da contingência. Nisso, ela se distingue da percepção serial, que toma conhecimento de uma informação após a outra. Dados e informações não têm nenhum poder simbólico.

O simbólico atua imediatamente na percepção. No âmbito pré-reflexivo, emocional, estético, ele influencia nosso comportamento e nosso pensamento. Símbolos produzem coisas comuns que tornam possível o nós, a coesão de uma sociedade. Só por meio do simbólico, do estético, forma-se o sentimento compartilhado.

(…)

A perda do sentimento compartilhado proporcionado pelo simbólico acentua a falta de ser. A comunidade é uma totalidade mediada simbolicamente. O vazio simbólico narrativo leva à fragmentação e à erosão da sociedade.”

HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa, ou sobre a inatividade. Ed. Vozes, 2023, Local 904-911.

A Absoluta falta de ser

Época sem festa é uma época sem comunidade

“A época sem festa é uma época sem comunidade. Hoje se evoca em todo lugar a Community, mas esta é a comunidade em forma de mercadoria. Ela não deixa surgir nenhum nós. O consumo desenfreado isola e separa os humanos. Consumidores são solitários. Também a comunicação se mostra como comunicação sem comunidade. Mídias sociais aceleram a desconstrução da comunidade. O capitalismo transforma o próprio tempo em uma mercadoria. Desse modo, ele perde toda festividade. Acerca da comercialização do tempo, Debord observa que “a realidade do tempo foi substituída pela propaganda do tempo”.

HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa, ou sobre a inatividade. Ed. Vozes, 2023, Local 88

Considerações sobre a inatividade