— Como são interessantes as suas observações! Mas não procurou saber as razões de sua demora naquelas paragens?
— Absolutamente — respondeu, persignando-se. — Como lhe disse, enquanto estive na Terra, fiz o possível por ser uma boa religiosa. Sabe o senhor que ninguém está livre de pecar. Meus escravos provocavam rixas e contendas, e, embora a fortuna me proporcionasse vida calma, de quando em quando era necessário aplicar disciplinas. Os feitores eram excessivamente escrupulosos e eu não podia hesitar nas ordens de cada dia. Não raro algum negro morria no tronco para escarmento geral; outras vezes, era obrigada a vender as mães cativas, separando-as dos filhos, por questões de harmonia doméstica.
Nessas ocasiões, SENTIA MORDER-ME A CONSCIÊNCIA, MAS CONFESSAVA-ME TODOS OS MESES, quando o padre Amâncio visitava a fazenda e, depois da comunhão, estava livre dessas faltas veniais, porque, recebendo a absolvição no confessionário e ingerindo a sagrada partícula, estava novamente em dia com todos os meus deveres para com o mundo e com Deus.
— Escravo é escravo. Se assim não fora, a religião nos ensinaria o contrário. Pois se havia cativos em casa de bispos, quanto mais em nossas fazendas? Quem haveria de plantar a terra, senão eles? E creia que sempre lhes concedi minhas senzalas como verdadeira honra!… (…) Padre Amâncio, nosso virtuoso sacerdote, disse-me na confissão que os africanos são os piores entes do mundo, nascidos exclusivamente para servirem a Deus no cativeiro.
— André, meu amigo, você esqueceu que estamos providenciando alívio a doentes e perturbados? Que proveito lhe advém de semelhantes informações? Os dementes falam de maneira incessante, e quem os ouve, gastando interesse espiritual, pode não estar menos louco. (…)
Não se impressione — exclamou a enfermeira delicadamente —, atendamos os irmãos perturbados.
— Mas a senhora é de opinião que estou nesse número? — perguntou a velhota, melindrada.
Narcisa, porém, demonstrando suas excelentes qualidades de psicóloga, tomou expressão de fraternidade carinhosa e exclamou:
— Não, minha amiga, não digo isso; creio, porém, que deve estar muito cansada; seu esforço purgatorial foi muito longo…
XAVIER, Francisco Cândido / André Luiz. Nosso Lar. 1. ed. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1944. Edição Kindle.
CAPÍTULO 34 | OS RECÉM-CHEGADOS DO UMBRAL