“O termo prima materia tem uma longa história, que remonta aos filósofos pré-socráticos. Esses antigos pensadores estavam presos a uma idéia a priori, uma imagem arquetípica que lhes dizia que o mundo é gerado de uma matéria única original, a chamada primeira matéria. Embora divergissem no tocante à identificação dessa matéria primordial, concordavam com sua existência. Tales dizia ser a primeira matéria “água”; Anaximandro a chamava “o ilimitado” (apeiron); Anaxímenes dava-lhe o nome de “ar”; e Heráclito a considerava “fogo”.
Essa ideia de uma substância unica original não tem fonte empírica no mundo exterior. Exteriormente, o mundo é sem dúvida uma multiplicidade. Portanto, a idéia deve ser a projeção de um fato psíquico.(…) Impos-se à prima materia, por assim dizer, uma estrutura quádrupla, uma cruz, que representa os quatro elementos, dois grupos de contrários: terra e ar, fogo e água. Psicologicamente, esta imagem corresponde à criação do ego a partir do inconsciente indiferenciado mediante o processo de discriminação das quatro funções: pensamento, sentimento, sensação e intuição.
Aristóteles elaborou a idéia da prima materia em conexão com sua distinção entre matéria e forma. Segundo ele, a matéria elementar, antes de moldar-se ou de ter a forma imposta sobre si, é pura potencialidade – ainda não atualizada, porque o real não existe enquanto não assume uma forma particular. Segundo afirma um comentador de Aristóteles: “A primeira matéria é o nome desse poder inteiramente indeterminado de mudança. ”
Os alquimistas herdaram a idéia da prima materia da antiga filosofia, aplicando-a às suas tentativas de transformação da matéria. Pensavam que, para transformar uma dada substância, era preciso, antes de tudo, reduzi-la ou fazê-la retornar ao seu estado indiferenciado original (…)
A criança é a prima materia do adulto. A premência de transformação desse paciente provoca seu retorno à condição original. Em termos aristotélicos, a forma que atualiza a personalidade ora existente está sendo dissolvida e levada de volta à primeira matéria, o estado informe da pura potencialidade, para que uma nova forma ou atualidade surja.
A inocência corresponde ao estado de indiferenciação da prima materia. O sonho nos faz recordar das palavras de Jesus: “Em verdade, vos digo, se não vos converterdes e não vos fizerdes como meninos, jamais entrareis no reino dos céus” (Mat., 18:3, RSV). Fazer-se como meninos é reverter ao estado inocente e indiferenciado da prima materia, um requisito da transformação.
Os aspectos fixos e desenvolvidos da personalidade não permitem mudanças. São sólidos, estabelecidos e certos de sua correção. Somente a condição original indefinida, fresca e vital, mas vulnerável e insegura-simbolizada pela criança, está aberta ao desenvolvimento e, portanto, viva.
Consideramos a imagem de uma criança em sonhos um dos símbolos do Si-mesmo, mas ela também pode simbolizar a prima materia.
(…) os textos fazem referência a encontrar, e não a produzir, a prima materia.
(…)
O problema da descoberta da prima materia corresponde ao problema da descoberta de material de trabalho na psicoterapia. (…)
1. Ela é ubíqua, está em toda parte, diante dos olhos de todos.
2. Apesar do seu grande valor interior, a prima materia tem uma aparência exterior desagradável, razão pela qual é desprezada, rejeitada e atirada ao lixo. Trata-se a prima materia como o servo sofredor citado em Isaías. Psicologicamente, isso significa que a prima materia está na sombra, naquela parte da personalidade tida como a mais desprezível. Os aspectos mais dolorosos e humilhantes de nós mesmos são os próprios aspectos a serem trazidos à luz e trabalhados.
3. Aparece como multiplicidade “tem tantos nomes quantas são as coisas”, mas é, ao mesmo tempo, una.
4. A prima materia é indiferenciada, sem fronteiras, limites ou forma definidos.
EDINGER, Edward F. Anatomia da Psique. O Simbolismo Alquímico na Psicoterapia, Ed. Cultrix 2006, Pág.29-32.
Capítulo 1 Introdução