“Vários mártires cristãos estão associados à imagem de uma escada. O mais notável dentre eles é Santa Perpétua, que em 203 d.C. enquanto estava na prisão, pouco antes de ser martirizada na arena de Cartago teve o seguinte sonho:
“Vi uma escada de bronze, de tamanho miraculoso, que alcançava o céu e era tão estreita que só uma pessoa de cada vez podia subir por ela. Em ambos os lados da escada, havia todo tipo de implementos de ferro -espadas, lanças, ganchos, adagas e arpões, de maneira que os descuidados ou aqueles que não se mantivessem eretos enquanto subiam eram feitos em pedaços e ali ficavam, dependurados. Abaixo da escada, um gigantesco dragão, à espera daqueles que subiam, os assustava, pondo-os em fuga. Mas Sáturo subiu antes de mim (da mesma maneira como depois preferiu morrer antes, por amor a nós, porque ele fora nosso mestre mas depois não estava conosco quando fomos atirados na prisão). Ao atingir o topo da escada ele voltou-se para mim e disse: “Perpétua, estou te segurando, mas não deixe que o dragão te morda.” E eu respondi: “Ele não me fará mal, em nome de Jesus Cristo.” E o dragão retirou lentamente sua cabeça da parte inferior da escada, como se tivesse medo de mim e eu pisei nele, como se estivesse pisando o primeiro degrau da escada, e atingi o topo. Vi um vasto jardim e, sentado em seu centro, um alto homem grisalho, em roupas de pastor, ordenhava ovelhas, tendo ao seu redor muitos milhares de pessoas, vestidas de branco. E ele levantou a cabeça, olhou para mim e disse:
Que bom que tenhas vindo, filha.” Ele me chamou para perto de si e me estendeu uma porção do queijo que obtinha. Eu o peguei com as mãos em concha e comi. E todos aqueles que se encontravam ao seu contei imediatamente essa visão ao meu irmão e compreendemos que ela significava a paixão vindoura. A partir daquele momento, passamos a não mais depositar esperanças neste mundo.”
Esse assombroso sonho ilustra o Zeitgeist da era cristã, que mal começava naquela época. O novo espírito cristão era o espírito da sublimatio.
(…) Falamos aqui da sublimatio superior, em contraste com a inferior. A sublimatio inferior sempre deve ser seguida por uma descida, ao passo que a superior é um processo de culminância, a translação final para a eternidade daquilo que foi criado no tempo.(…) A consciência individual ou a percepção individual da totalidade é o produto psicológico do processo temporal de individuação. Por essa razão, o tornar-se eterno é uma idéia misteriosa, que parece implicar a transformação da consciência alcançada pelo indivíduo num acréscimo permanente à psique arquetípica. Há, na verdade, evidências em favor dessa idéia. Por exemplo, Jung teve visões de sublimatio quando esteve perto da morte em 1944. Ele se achou elevado bem acima da terra e foi se tornando uma “forma objetiva”:
“Tive a sensação de que tudo se afastava de mim; tudo o que eu buscava, desejava ou pensava, toda a fantasmagoria da existência terrena se desligava de mim ou me era arrancada um processo extremamente doloroso. E, todavia, algo restava; era como se naquele momento eu tivesse ao meu lado tudo aquilo que vivera ou fizera, tudo que havia acontecido à minha volta. Poderia, do mesmo modo, dizer: aquilo estava comigo e eu era aquilo. Eu consistia, por assim dizer, em tudo aquilo. Eu consistia em minha própria história, e eu sentia, com grande certeza: eis o que sou. “Sou esse feixe daquilo que ocorreu e daquilo que foi realizado.
Essa experiência me deu a impressão de uma extrema pobreza, acompanhada, ao mesmo tempo, de uma grande satisfação. Já não tinha o que querer ou desejar. Eu existia numa forma objetiva: eu era aquilo que fora e vivera. No início, predominou a sensação de aniquilamento, de ser roubado ou despojado; mas, de repente, isso deixou de ter importância. Tudo parecia ter passado; o que restava era um fait accompli, sem nenhuma referência ao que tinha sido antes. Não tinha nenhuma mágoa de que algo tivesse sido tirado ou se tivesse perdido. Pelo contrário, eu tinha tudo o que era, e isso era tudo.
EDINGER, Edward F. Anatomia da Psique. O Simbolismo Alquímico na Psicoterapia, Ed. Cultrix 2006, Pág.155-158.
Capítulo 5 Sublimatio