Não mais Cristão, mas Cristo

“Quem alcança a gnosis torna-se “não mais cristão, mas Cristo” ” Assim sendo, podemos observar que esse gnosticismo tinha um significado maior que um movimento de protesto contra o cristianismo ortodoxo. O gnosticismo também incluía uma perspectiva religiosa que, de modo implícito, opunha-se ao desenvolvimento do tipo de instituição na qual se converteu a antiga Igreja católica. Aqueles que esperavam “tornarem-se Cristo” possivelmente não reconheceriam as estruturas institucionais da igreja -seus bispos, padres, cre- dos, cánones ou rituais – como detentoras da autoridade final.

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 152.

Capítulo: 6- Gnosis: Autoconhecimento Como Conhecimento de Deus.

Unir-se ao Bispo é Unir-se à Igreja

“Como um fiel poderia identificar os verdadeiros e os falsos cristãos? Os cristãos ortodoxos e gnósticos ofereciam respostas diferentes, pois cada grupo tentava definir a igreja de modo a excluir o oponente. Os cristãos gnósticos, pleiteando representar apenas “uns poucos”, sugeriam critérios qualitativos. Em protesto contra a maioria, insistiam em que o batismo não convertia um ser em cristão: segundo o Evangelho de Filipe, muitas pessoas “mergulham na água e retornam à superfície sem terem recebido nada”,  e ainda assim afirmavam ser cristãos. Nem a profissão do credo ou martírio contava como evidência: “qualquer pessoa pode fazer essas coisas.” Acima de tudo, recusavam-se a identificar a igreja com a comunidade visível e real que, diziam, com frequência apenas a imitava. Em vez disso, citando um dito de Jesus (“Pelos seus frutos os conheceremos”), demandavam provas de maturidade espiritual para demonstrar que uma pessoa pertencia à verdadeira igreja.

No entanto, os cristãos ortodoxos no final do século II começaram a estabelecer critérios objetivos para o ingresso na igreja. Quem quer que confessasse o credo, aceitasse o ritual do batismo, participasse na adoração e obedecesse aos clérigos era aceito como um companheiro cristão. Procurando unificar as diversas igrejas espalhadas pelo mundo em uma única rede, os bispos eliminaram os critérios qualitativos para que as pessoas se tornassem membros da igreja. A avaliação de cada candidato com base na maturidade espiritual, percepção ou santidade pessoal, como os gnósticos preconizavam, necessitaria de uma administração muito mais complexa. Além disso, tenderia a excluir muitos que precisavam do acolhimento da igreja. A fim de tornar-se verdadeiramente católica-universal, a igreja rejeitou todas as formas de elitismo, com o intuito de atrair mais e mais fiéis. Nesse processo, seus líderes criaram uma estrutura clara e simples, consistindo em doutrina, ritual e organização política, que provou ser, surpreendentemente, um sistema organizacional muito eficaz.

Assim Inácio, o bispo ortodoxo de Antioquía, define a igreja em termos do bispado que representa esse sistema:

Ninguém que pertença à igreja permanecerá excluido do bispado. A eucaristia será válida quando celebrada pelo bispo ou por quem ele indicat (Qualquer que seja a oferenda do bispo [a eucaristia], acongregação deverá estar presente, assim como em qualquer lugar onde Jesus Cristo esteja, a Igreja católica estará presente *(Inácio, Smyrneans8.1-2.)

(…) Inácio declara:

É ilegítimo batizar ou realizar um ágape (rito eucarístico) sem o bispo (…) Unir-se ao bispo é unir-se à igreja; separar-se do bispado significa não apenas separar-se da igreja, mas do próprio Deus. *(Ibid., 8.2.)

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 118-119.

Capítulo: 5- Qual é a “Verdadeira Igreja”?

Confessar Cristo

Heráclio reflete sobre a questão: O que significa “confessar Cristo”? Ele explica que as pessoas confessam Cristo de diferentes maneiras. Algumas confessam Cristo com sua fé e com -sua conduta cotidiana. No entanto, a maioria leva em conta apenas o segundo tipo de confissão – a confissão verbal (“Eu sou cristão”) diante de um magistrado. Esta última, diz, é a que “a maioria” (cristãos ortodoxos) julga ser a única confissão. Mas, Herádio observa, “mesmo os hipócritas podem fazer essa confissão. O que se deseja universalmente de todos os cristãos, afirma, é o primeiro tipo de confissão; o segundo é necessário para alguns, mas não para todos. Discípulos como Mateus, Filipe e Tomé nunca se “confessaram” perante magistrados; ainda assim, declara, confessaram Cristo com altivez, “com fé e conduta durante toda a vida”.

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 109.

Capítulo: 4- A Paixão de Cristo e a Perseguição aos Cristãos.

A Grandeza de Roma

“(…) eram presas e brutalmente torturadas na prisão enquanto aguardavam o dia 1º de agosto, data marcada para sua execução. Esse dia era um feriado para celebrar a grandeza de Roma e de seu imperador. Nessas ocasiões, o governador deveria demonstrar seu patriotismo oferecendo diversos entretenimentos públicos para toda a população da cidade. Essas obrigações sobrecarregavam os funcionários provinciais com enormes despesas para contratar gladiadores, boxeadores, contorcionistas e espadachins.Mas, no ano anterior, o imperador e o Senado promulgaram uma nova lei para contrabalançar o custo dos espetáculos de gladiadores. Agora, o governador podia legalmente substituir as exibições atléticas pelo espetáculo da tortura e execução de criminosos condenados que não eram cidadãos – com um custo de 6 aurei por pessoa, um décimo do custo de contratar um gladiador de quinta classe, com economias proporcionais para os mais graduados. Esse fato, sem dúvida, exacerbou a aversão oficial contra os cristãos, que poderiam oferecer, como fizeram em Lyon, uma diversão sem despesas elevadas.”

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 96-97.

Capítulo: 4- A Paixão de Cristo e a Perseguição aos Cristãos.

Julgamento Cristão

“Incumbidos do desagradável dever de ordenar execuções por descumprimento das normas vigentes, os funcionários romanos quase sempre tentavam persuadir o acusado a preservar sua vida. Segundo relatos contemporâneos (ca.
165), depois que o idoso e reverenciado bispo Policarpo de Esmirna, na Ásia Menor, foi preso pela polícia,

…o governador tentou persuadi-lo a renegar suas convicções dizendo: “Respeito sua idade”, e outras coisas similares que eles usualmente dizem; “Jure pelo espírito do imperador. Redima-se. Diga ‘Abaixo os ateus!”‘ Policarpo, com uma expressão solene, olhou para a multidão de pagãos sem lei presente ao estádio (…) e disse: “Abaixo os ateus!”O governador persistiu e falou: “Jure e eu o deixarei partir. Amaldiçoe Cristo!” Mas Policarpo respondeu:-”Durante 86 anos fui seu servo e Ele nunca me causo mal (…) Se o senhor se ilude que jurarei pelo espírito do imperador, como pediu,e se finge não saber quem eu sou, ouça e lhe direi simplesmente: Eu sou cristão.” *(“Martírio de São Policarpo” 9-10, em MÁRTIRES CRISTÃOS, 9-11. Ênfase acrescentada)

(…)

Esse comportamento provocou o desprezo do estóico imperador Marco Aurélio, que considerava os cristãos uns exibicionistas mórbidos e desencaminhados. Atualmente, muitas pessoas podem concordar com esse julgamento, ou tratar os mártires como masoquistas neuróticos. Contudo, para os judeus e os cristãos nos séculos I e II, o termo tinha uma conotação diferente: martus significava em grego “testemunha”. No Império Romano, como em muitos países do mundo atual, membros de alguns grupos religiosos caem sob suspeita dos governos como organizações que promovem atividades criminosas ou traiçoeiras. As pessoas que, a exemplo de Justino, ousavam protestar publicamente contra o tratamento injusto conferido aos cristãos nos tribunais, convertiam-se em alvos possíveis de ação policial. Aqueles que se viam nessa situação à época, como agora, a escolha era simples: pronunciar-se arriscando serem presos, torturados, submetidos a um julgamento falso, além de exílio ou morte, ou calar-se para preservar a vida. Seus companheiros de crença reverenciavam os que falavam, chamando-os de “confessores”, e respeitavam só os que eram condenados à morte como “testemunhas” (mártires).

Mas nem todos os cristãos confessavam. Muitos, no momento da decisão, escolhiam a opção oposta. Alguns consideravam o martírio uma tolice, uma perda de uma vida humana e, assim, contrário ao desejo de Deus. Argumentavam que “Cristo, ao morrer por nós, foi executado para que não tivéssemos o mesmo destino”.”

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 93.

Capítulo: 4- A Paixão de Cristo e a Perseguição aos Cristãos.

A Acusação de Crescênio

(…) Justino estava certo: aparentemente foi a acusação de Crescêncio que causou sua prisão, julgamento e condenação em 165 d.C. Rústico, um amigo pessoal de Marco Aurélio (que nessa época sucedera o pai como imperador), conduziu o julgamento. Rústico ordenou a execução de Ptolomeu junto com um grupo de seus alunos, cujo crime era o aprendizado da filosofia cristã com o mestre. O registro desse julgamento mostra que Rústico perguntou a Justino:

“Onde vocês se encontram?” (…) “Assim que surge uma preferência ou oportunidade”, disse Justino. “De qualquer modo, supõe que podemos nos reunir todos no mesmo lugar? De nenhuma forma, pois o Deus dos cristãos não está circunscrito a um local; invisível ele ocupa o céu e a terra, e é adorado e glorificado pelos seus fiéis no mundo inteiro.”

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 89-90.

Capítulo: 4- A Paixão de Cristo e a Perseguição aos Cristãos.

A Natureza de Deus e a Política

“Esse não é um caso único: podemos ver em toda a história do cristianismo como as várias crenças sobre a natureza de Deus continham inevitáveis e diferentes implicações políticas.

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 51.

Capítulo: 2- “Um Deus, Um Bispo”: A Política do Monoteísmo.

O Ritual de Redenção

“Essa tradição secreta revela que Deus, a quem a maioria dos cristãos venera, de modo ingênuo, como criador, e Pai, é, na verdade, apenas a imagem do verdadeiro Deus. Segundo Valentino, que Clemente e Inácio descrevem de forma equivocada como Deus na realidade aplica-se apenas ao creator. Valentino, seguindo Platão, utiliza o termo grego para “criador” (demiurgos),  sugerindo um ser menos divino que serve como instrumento de poderes superiores. Não é Deus, explica, porém o demiurgo que governa como rei e senhor, e age como comandante militar,  que legisla e julga aqueles que infringem sua lei  -em suma, ele é o “Deus de Israel”.

(…)

Ao atingir essa gnosis – essa sabedoria- o candidato  está pronto para receber o sacramento secreto conhecido como o sacramento da redenção.

O ritual de redenção, que mudava de forma dramática a relação do iniciado com o demiurgo, modificava, ao mesmo tempo, sua relação com o bispo. Antes, o fiel aprendia a se submeter ao bispo “como ao próprio Deus”, pois, como lhe fora dito, o bispo governa, comanda e julga “no lugar de Deus”. Agora, porém, vê que essas restrições aplicam-se apenas a crentes ingênuos que ainda temem e servem o demiurgo.”

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 40-41.

Capítulo: 2- “Um Deus, Um Bispo”: A Política do Monoteísmo.

Controvérsia sobre a Ressurreição

“Como ninguém nas últimas gerações pode ter acesso a Cristo como os apóstolos tiveram, durante sua vida e ressurreição, cada crente deve procurar a autoridade na igreja por eles fundada em Roma e nos bispos.
Alguns cristãos gnósticos discordaram.

O Cristo ressuscitado explica a Pedro que aqueles que “se autodenominam bispos e também diáconos, como se tivessem recebido sua autoridade de Des”, são, na realdidade “canais secos” Embora “não compreendam o mistério”, vangloriam-se de que apenas eles possuem “o mistério da verdade“.  O autor acusa-os de má, interpretação do ensinamento dos apóstolos e, por isso, de terem estabelecido uma “imitação de igreja” no lugar de uma verdadeira “irmandade” cristã.

(…) Mas, para eles, o ensinamento da igreja, e dos funcionários da igreja, jamais teria a autoridade definitiva atribuída pelos cristãos ortodoxos Diziam, dos que receberam gnosis, que foram muito além do ensinamento da igreja e transcenderam sua autoridade hierárquica.

Portanto, a controvérsia sobre a ressurreição provou-se crítica na transformação do movimento cristão em instituição religiosa. Todos os cristãos concordam, em princípio, que apenas o próprio Cristo – ou Deus – é a fonte definitiva da autoridade espiritual. Mas a questão imediata, é claro, era prática: quem, no presente, administra essa autoridade?

Valentino e seus seguidores responderam: quem quer que tenha contato pessoal, direto, com “Aquele que vive”. Argumentaram que apenas a própria experiência oferece o critério definitivo da verdade, tendo precedência sobre todos os testemunhos indiretos e toda a tradição – até mesmo a tradição gnóstica!

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 26-27.

Capítulo: 1- A Controvérsia Sobre a Ressurreição de Cristo: Acontecimento Histórico ou Símbolo?

Eu Sou o Conhecimento da Verdade

“Como poderia, po exemplo, um cristão no século II escrever o Livro Secreto de João? Podemos imaginar o autor na situação que atribui a João no início do livro: perturbado por dúvidas, começa a refletir sobre o significado da missão e do destino de Jesus. Durante esse questionamento interior, as respostas podem ocorrer de forma espontânea em sua mente; padrões mutantes de imagens podem aparecer. Quem compreende esse processo, não nos termos da psicologia moderna como atividade da imaginação ou do inconsciente, mas em termos religiosos, pode vivenciar essas formas de comunicação espiritual com Cristo. Ao ver sua própria comunicação com Cristo como continuação do que os discípulos desfrutaram, o autor, quando expõe o “diálogo” em forma literária, consegue lhe dar o papel dos que questionam. Poucos entre seus contemporâneos – exceto os ortodoxos, a quem considera homens de “mentalidade literal”- o acusariam de tê-lo forjado; ao contrário, os títulos desses trabalhos indicam que foram escritos “no espírito de” João, Maria Madalena, Filipe ou Pedro.

O título do Evangelho de Maria sugere que a revelação vem da comunicação direta e íntima com o Salvador. A insinuação de um relacionamento erótico entre Maria Madalena e ele pode indicar uma reivindicação de comunhão mística; em toda a história, os místicos de muitas tradições escolheram metáforas sexuais para descrever suas experiências. Os títulos do Evangelho de Tomé e do Livro de Tomé, o Contendor (atribuído ao “irmão gêmeo” de Jesus) podem sugerir que “você, o leitor, é o irmão gêmeo de Jesus”. Quem compreender esses livros descobrirá, como Tomé, que Jesus é seu “gêmeo”, seu “outro eu” espiritual. As palavras de Jesus a Tomé, então, são dirigidas ao leitor:

Como foi dito que você é meu irmão gêmeo e verdadeiro companheiro, examine a si mesmo para que possa entender quem você é(…) Eu sou o conhecimento da verdade.
Então, enquanto me acompanha, embora não possa compreender (isso), você já tomou conhecimento e será chamado ‘aquele que conhece a si mesmo’. Porque quem não conhece a si mesmo não conhece nada, masaquele que conhece a si mesmo atingiu, ao mesmo tempo,o conheci- mento sobre a profundeza de tudo.”*

*Livro de Tomé, o Contendor 1,38.7-18, em NHL 189.

PAGELS, Elaine. Os Evangélhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 19-20.

Capítulo: 1- A Controvérsia Sobre a Ressurreição de Cristo: Acontecimento Histórico ou Símbolo?