“É particularmente marcante o fato de sonhos referentes a roupas ocorrerem quando a morte está próxima. Por exemplo, alguns dias antes de morrer, uma mulher que sabia ter sido acometida de uma moléstia mortal sonhou estar se preparando para ir assistir a um desfile de moda. Poucos dias antes da morte do pai, um homem sonhou que viu o pai envergando, com muita elegância, roupas novas. Esses sonhos parecem referir-se a uma coagulatio final: a aquisição de um corpo imortal. No Livro de Enoque, lemos:
E os justos e eleitos se elevarão da terra,
E cessarão de ter o semblante abatido.
E estarão envoltos em vestiduras de glória.
E essas serão as vestes da Vida que vem do Senhor dos Espíritos:
E vossas vestiduras não se desgastarão,
Nem vossa glória desaparecerá diante do Senhor dos Espíritos. (62: 15-16)
A idéia de um corpo imortal, que expressa uma coagulatio final do espírito, é uma imagem fronteiriça cujo sentido só pode ser percebido de modo deveras difuso. Corresponde ao símbolo paradoxal da Pedra Filosofal e parece referir-se ao alvo final da individuação.
O mais grandioso símbolo da coagulatio é o mito cristão da Encarnação do Logos Divino. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.” (João, 1:14 RSV) (Ver figura 4-9.)
Contudo, alguns aspectos da vida de Cristo podem ser destacados por sua relevância particular. Cristo nasceu de uma virgem; isto é, encarnou por meio da terra pura. A Virgem Maria corresponde à noção alquímica de “terra branca foliada”. Diz a alquimia: “Semeia teu ouro na terra branca foliada” (ver figura 4-10). A terra branca corresponde à cinza que sobreviveu à calcinatio. Trata-se de uma contradição, porque a terra é tipicamente branca. Como observamos, o princípio da materialidade que promove a coagulatio tem um nome ruim, terra negra. Mas no simbolismo cristão e, de modo mais explícito, na alquimia, surgiu a imagem simbólica da terra branca, um princípio da materialidade purificada. Psicologicamente, isso representa a possibilidade de uma atitude nova e purificada com relação à materialidade. Significa a descoberta do valor transpessoal do ego. Aquilo que purifica é a consciência. A terra negra do desejo do ego torna-se a terra branca que encarna o Si-mesmo.
As humildes circunstâncias do nascimento de Cristo correspondem aos aspectos comuns e corriqueiros do fato de se ter existência concreta. Os eventos da Paixão também se referem a isso. A condenação e execução de Jesus com malfeitores o apresentam como um portador voluntário do mal. O fato de carregar a cruz representa a percepção da carga do ser. A imagem mais importante é a própria crucifixão ser pregado à matéria (ver figura 4-11). Em termos alquímicos, a cruz representa os quatro elementos de que é feito todo ser manifesto. Fixatio é um dos sinônimos de coagulatio, havendo entre os alquimistas imagens da serpente mercurial fixada à cruz ou transfixada numa árvore.
O espírito não coagulado é livre, podendo ter qualquer imagem sem sofrer as consequências. Mas sem um ego concretamente realizado significa ser pregado na cruz do mundo criado.
No tocante ao mito cristão da encarnação, é de particular interesse o propósito declarado do drama como um todo: a redenção ou resgate da raça humana pecadora. Há um conto gnóstico paralelo da encarnação que declara um propósito semelhante. Nos Atos de Tomé, texto apócrifo, está o chamado “Hino da pérola” ou “Hino da alma”. Ele descreve a exigência de que o filho do rei deixe o palácio celestial dos pais, dispa seu manto de glória, e desça à terra do Egito, a fim de recuperar “a pérola que está no meio do mar, tendo à sua volta a serpente resfolegante”. Após receber conselhos úteis do céu, o filho do rei realiza sua missão de resgate, retorna à sua casa celestial e enverga suas vestes celestiais. Tanto no mito cristão como no gnóstico, a encarnação ou descida na carne destina-se a fazer um resgate.”
EDINGER, Edward F. Anatomia da Psique. O Simbolismo Alquímico na Psicoterapia, Ed. Cultrix 2006, Pág.121-123.
Capítulo 4 Coagulatio