Proveitos Trazidos a alma por esta noite

“O primeiro e principal proveito causado na alma por esta seca e escura noite de contemplação é o conhecimento de si mesma e de sua miséria.

Esta falta de gosto consigo mesma, e o desconsolo que sente por não servir a Deus, agradam mais a Ele do que todas as obras e gostos que a alma tinha dantes, fossem os maiores, pois tudo aquilo ocasionou muitas imperfeições e ignorâncias.

Na veste de aridez que envolve a alma, não se encerra apenas este proveito a que nos referimos; há também outros de que vamos falar agora, deixando de parte grande número que ainda fica por dizer; mas todos procedem, como de sua fonte e origem, do conhecimento próprio.

Temos agora por averiguado como esta noite escura produz primeiramente o conhecimento próprio, e daí, como de seu fundamento, procede o conhecimento de Deus.

Assim, para o conhecimento de Deus e de si próprio, o meio é esta noite escura, com suas securas e vazios, embora não o seja ainda na plenitude e abundância da outra noite do espírito, pois o conhecimento recebido nesta primeira noite é como o princípio do que receberá mais tarde.

A alma, nas securas e vazios desta noite do apetite, lucra humildade espiritual – virtude contrária ao primeiro vício capital que dissemos ser a soberba espiritual. Por meio da humildade proporcionada pelo conhecimento próprio, purifica-se de todas as imperfeições, acerca da soberba em que costumava cair no tempo de sua prosperidade. Vendo-se agora tão árida e miserável, nem mesmo por primeiro movimento lhe ocorre a ideia – como outrora acontecia – de estar mais adiantada do que os outros, ou de lhes levar vantagem. Muito ao contrário, conhece que os outros vão melhor.

Esta noite torna também as almas submissas e obedientes no caminho espiritual, pois, vendo-se tão miseráveis, não semente ouvem o que lhes é ensinado, mas ainda desejam que qualquer pessoa o encaminhe e diga como devem proceder. Perdem a presunção afetiva que às vezes tinham na prosperidade.

CRUZ, São João da. A noite escura da Alma. Editora Família Católica, 2018, versão Kindle, Posição: 840-917.

Explicação desta noite escura

Nesta noite que chamamos contemplação, os espirituais passam por duas espécies de trevas ou purificações, conforme as duas partes da natureza humana, a saber: a sensitiva e a espiritual.

“Assim, a primeira noite, ou purificação, é a sensitiva, na qual a alma se purifica segundo o sentido, submetendo-o ao espírito. A segunda noite, ou purificação, é a espiritual, em que se purifica e despoja a alma segundo o espírito, acomodando-o e dispondo-o para a união de amor com Deus.

Já percorreram, durante algum tempo, o caminho da virtude, perseverando em meditação e oração; pelo sabor e gosto que aí achavam, aos poucos se foram desapegando das coisas do mundo e adquiriram algumas forças espirituais em Deus. Deste modo, conseguiram refrear algum tanto os apetites naturais, e estão dispostos a sofrer por Deus um pouco de trabalho e secura sem volver atrás, para o tempo mais feliz. Estando, pois, estes principiantes no meio das melhores consolações em seus exercícios espirituais, e quando lhes parece que o sol dos diversos favores os ilumina mais brilhantemente, Deus lhes obscurece toda esta luz interior. Fecha-lhes a porta, vedando-lhes a fonte viva da doce água espiritual que andavam bebendo n’Ele todas as vezes e todo o tempo que desejavam; pois, como eram fracos e pequeninos, não havia para eles porta cerrada,

Eis que de repente os mergulha Nosso Senhor em tanta escuridão que ficam sem saber por onde andar, nem como agir pelo sentido, com a imaginação e o discurso. Não podem mais dar um passo na meditação, como faziam até agora. Submergido o sentido interior nesta noite, deixa-os Deus em tal aridez que, não somente lhes é tirado todo o gosto e sabor nas coisas espirituais, bem como nos exercícios piedosos dantes tão deleitosos, mas, em vez de tudo isto, só encontram amargura e desgosto.

Vendo-os Deus um pouquinho mais crescidos, quer que se fortaleçam e saiam das faixas da infância – tira-lhes, portanto, o doce peito e os desce dos divinos braços, ensinando-os a andar com seus próprios pés. Em tudo isto sentem grande novidade totalmente contrária ao que estavam acostumados.”

CRUZ, São João da. A noite escura da Alma. Editora Família Católica, 2018, versão Kindle, Posição: 593-620.

Indisponibilidade

“O silêncio tem início a partir da indisponibilidade. A indisponibilidade estabiliza e aprofunda a atenção, suscita o olhar contemplativo. Ele tem a paciência para o largo e o lento. Onde tudo está disponível e alcançável, nenhuma atenção profunda é formada. O olhar não se detém. Ele vagueia como o de um caçador. Para Nicolas Malebranche, a atenção é a oração natural da alma. A alma não reza mais hoje em dia. Ela se produz. A comunicação extensiva dispersa a alma.

A contemplação, no entanto, se opõe à produção. A compulsão de produzir e comunicar destrói a imersão contemplativa.

(…)a verdade de uma fotografia é revelada no silêncio, no fechar dos olhos.”

HAN, Byung-Chul. Não coisas: Reviravoltas do mundo da vida. Ed. Vozes, 2021, Local 1315-1323.

Silêncio

A contemplação é oposta à produção

“A contemplação é oposta à produção. Ela se relaciona com o indisponível como algo já dado. O pensar está sempre recepcionando. A dimensão da dádiva no pensar [Denken] faz dele um agradecer [Danken]. No pensar como agradecer, a vontade se resigna [abdanken] inteiramente: “O espírito nobre paciente seria um puro repousar-em-si de toda vontade que, recusando o querer, entregou-se àquilo que não é uma vontade. O espírito nobre seria a essência do pensar e, assim, do agradecer”.

HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa, ou sobre a inatividade. Ed. Vozes, 2023, Local 670.

Da ação ao ser

Psicanálise do fogo

“A psicanálise do fogo de Bachelard, em contrapartida, libera sua dimensão contemplativa. A postura que o ser humano adota diante do fogo, já involuntariamente desde criança, ilustra sua inclinação ancestral à contemplação.”

HAN, Byung-Chul. Vita Contemplativa, ou sobre a inatividade. Ed. Vozes, 2023, Local 130.

Considerações sobre a inatividade

Traço da contemplação

“A negatividade do não-para é também um traço essencial da contemplação. Na meditação zen, por exemplo, tenta-se alcançar a negatividade pura do não-para, isto é, o vazio, libertando-se de tudo que aflui e se impõe. Assim é um processo extremamente ativo, e algo bem distinto que passividade.”

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Ed. Vozes, 2022, Local 465.

5| Pedagogia do ver

Recolhimento contemplativo

“De princípio ele tentou ganhar claridade sobre as camadas geológicas. Depois não se moveu mais do lugar e apenas olhava, até que, como dizia Madame Cézanne, os olhos lhe saltassem da cabeça. […] A paisagem, dizia ele, pensa-se em mim, eu sou sua consciência.

Sem esse recolhimento contemplativo, o olhar perambula inquieto de cá para lá e não traz nada a se manifestar.”

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Ed. Vozes, 2022, Local 281-285.

3 | O tédio profundo

Demorar-se contemplativo

“Com o título Vita contemplativa não deveria ser reconjurado aquele mundo no qual esta estava alocada originariamente. Ela está ligada com aquela experiência de ser, segundo a qual o belo e o perfeito é imutável e imperecível e se retrai a todo e qualquer lançar mão humano. Seu humor de fundo é o espanto a respeito do ser-assim das coisas, afastado de toda e qualquer exequibilidade e processualidade. A dúvida moderna cartesiana dissolve o espanto. A capacidade contemplativa não está necessariamente ligada ao ser imperecível. Justamente o oscilante, o inaparente ou o fugidio só se abrem a uma atenção profunda, contemplativa. Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. Formas ou estados de duração escapam à hiperatividade.”

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Ed. Vozes, 2022, Local 272.

3 | O tédio profundo