“Na passagem da sociedade do martírio para a sociedade disciplinar também a relação com a dor se transforma. Em Vigiar e punir, Foucault aponta que a sociedade disciplinar insere a dor em uma forma discreta. Ela é submetida a um cálculo disciplinar: “Não mais punições tão imediatamente físicas, uma certa discrição na arte do causar sofrimento, um jogo de dores sutis, silenciosas e discretas […]: dentro de poucas décadas, desapareceu o corpo martirizado, esquartejado, silenciado, marcado a ferro no rosto ou nos ombros, exposto vivo ou morto, oferecido como espetáculo. Desaparece o corpo como alvo principal da repressão punitiva”. Corpos martirizados não têm mais lugar na sociedade disciplinar, que está direcionada à produção industrial. O poder disciplinar fabrica corpos disciplinados [gelehrig] como meios de produção.
Na sociedade disciplinar, a dor ainda desempenha um papel construtivo. Ela forma o ser humano como meio de produção. Ela, porém, não é mais posta publicamente à exposição, mas sim é descolada para espaços disciplinares fechados como prisões, quartéis, sanatórios, fábricas ou escolas.
Em um manifesto futurista de Aldo Palazzesachi, que traz o título de A contrador [Der Gegenschmerz], enuncia-se: “Quanto maior a quantidade de risos que um ser humano consegue descobrir na dor, mais profundo é esse ser humano. Não se pode rir do fundo do coração se não se estava antes profundamente enterrado na dor humana”.
O corpo hedonista que, sem relação com um fim mais elevado, apraz-se consigo mesmo e desfruta de si próprio, desenvolve, em oposição ao corpo disciplinado, uma posição de recusa diante da dor. A ele, a dor aparece como inteiramente desprovida de sentido e de utilidade.
Na sociedade do desempenho neoliberal, negatividades como mandatos, proibições ou punições dão lugar a positividades como motivação, auto-otimização ou autorrealização. Espaços disciplinares são substituídos por zonas de bem-estar. A dor perde toda relação com o poder e com a dominação. Ela é despolitizada em uma circunstância médica.”
HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: A dor hoje. Ed. Vozes, 2021, Local, 166-203.
Coação à Felicidade