“Muitas pessoas, enlevadas com este sabor e gosto, procuram mais o deleite do que a pureza e discrição de espírito visada e aceita por Deus em todo o caminho espiritual. Além das imperfeições em pretender estes deleites, a gula desses principiantes lhes faz exceder os limites convenientes, afastando-se do justo meio no qual as virtudes se adquirem e fortalecem.
E, como todos os extremos são viciosos, com este modo de agir, vão os principiantes crescendo mais nos vícios do que nas virtudes; porque procuram satisfazer a sua própria vontade.
(…) não entendem que esse proveito de gosto sensível é o menor que produz o Santíssimo Sacramento. O maior é o proveito invisível da graça que deixa na alma; e para que ponhamos nele os olhos da fé, muitas vezes tira o Senhor os gostos e sabores sensíveis. Os principiantes, dos quais vamos tratando, querem sentir e gozar de Deus como se Ele fosse compreensível e acessível aos sentidos; procedem assim, não só na comunhão, como em todos os seus exercícios espirituais.
Do mesmo modo procedem no exercício da oração. Pensam que tudo está em achar gosto e devoção sensível, e procuram obtê-lo, como se diz, à força de braços, cansando e fatigando as potências e a cabeça; e quando não conseguem esses gostos, ficam muito desconsolados, pensando que nada fizeram.
Gastam todo o tempo em procurar esse gosto e consolo de espírito, e para isto, nunca se fartam de ler livros; ora tomam uma meditação, ora outra, dando caça ao deleite nas coisas de Deus. A estes, com muita justiça, discrição e amor, o Senhor nega as consolações, porque, a não agir assim, cresceriam eles sempre, por esta gula e apetite espiritual, em males sem conta. Convém muito, portanto, que entrem na noite escura,
Os que assim estão inclinados a esses gostos também caem noutra imperfeição muito grande: são muito frouxos e remissos em seguir pelo caminho áspero da Cruz; pois a alma que se deixa levar pelo saboroso e agradável naturalmente há de sentir repugnância da falta de sabor e gosto que encerra a negação própria.
Direi somente que a sobriedade e temperança espiritual produzem na alma outra disposição bem diversa, inclinando-a para a mortificação, temor e sujeição em todas as coisas, e mostrando-lhe que a perfeição e valor das coisas não consistem na sua multiplicidade nem no gosto sensível que proporcionam, mas sim em saber negar-se a si mesma em tudo.”
CRUZ, São João da. A noite escura da Alma. Editora Família Católica, 2018, versão Kindle, Posição: 480-538.