Comunidade de ressonância

“Rituais criam uma comunidade de ressonância capaz de um acorde, de um ritmo comum: “Rituais promovem eixos de ressonância socioculturalmente estabelecidos, ao longo dos quais se tornam experienciáveis relações de ressonância verticais (com Deus, o cosmos, o tempo e a eternidade), horizontais (na comunidade social) e diagonais (em relação às coisas)”[11]. Sem ressonância, a gente ecoa a si mesmo e se isola para si. O narcisismo crescente impede a experiência de ressonância. A ressonância não é um eco de si mesmo. A ela é inerente a dimensão do outro. Significa acorde. A depressão se origina no ponto zero da ressonância. A crise atual da comunidade é uma crise de ressonância. A comunicação digital consiste de câmeras de eco nas quais antes do que nada se ouve apenas a si mesmo falando. Likes, Friends e Followers não formam corpos de ressonância. Apenas aprofundam o eco de si mesmo.

Rituais são processos de incorporação, encenações do corpo. Os regimes válidos e os valores de uma comunidade são experienciados corporalmente e sedimentados. São inscritos no corpo, incorporados, ou seja, internalizados corporalmente. Desse modo, os rituais criam um saber e uma memória corporalizados, uma identidade corporalizada, uma comunhão corporal. A comunidade ritual é uma corporação. À comunidade como tal é inerente uma dimensão corporal. A digitalização enfraquece em tal medida o vínculo comunitário que surge dela um efeito descorporizante. A comunicação digital é uma comunicação descorporizada.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 167-175.

Coação de produção

Repetição

“Eu posso repetir apenas o que está privado de evento, e nisso, contudo, algo me alegra no canto do olho (a luz do dia, ou o crepúsculo); mesmo um pôr-do-sol já é um evento e irrepetível; com efeito, não posso repetir sequer uma vez uma determinada luz, ou um crepúsculo, mas apenas um caminho (e, nele, devo ter cuidado com todas as pedras, mesmo as novas)”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 153.

Coação de produção

A repetição é a característica essencial do ritual

“A percepção serial é extensiva, enquanto a percepção simbólica é intensiva. Dada sua extensão, sua atenção é rasa. A intensidade dá lugar hoje, em toda parte, à extensão. A comunicação digital é uma comunicação extensiva. Ela não produz relações, mas conexões.

O regime neoliberal acelera a percepção serial, aumenta o hábito serial. Elimina deliberadamente a duração para obter mais consumo. O update constante que compreende nesse ínterim todos os âmbitos da vida, não permite a duração, um término. A coação permanente da produção leva a um desencasamento. A vida se torna, com isso, mais contingente, mais efêmera, e instável. Habitar, contudo, requer duração.
O transtorno de déficit de atenção é resultado de um recrudescimento patológico da experiência serial. A experiência nunca repousa. Desaprendeu a permanecer. A atenção profunda como técnica cultural se forma justamente pelas práticas rituais e religiosas. Religião não provém por acaso de relegere, prestar atenção. Toda práxis religiosa é um exercício de atenção. O templo é um lugar de atenção profunda. A atenção é, segundo Malebranche, a reza natural da alma. Hoje, a alma não reza. Ela se produz continuamente.
Memorizar se chama em francês apprendre par cœur. Apenas a repetição alcança manifestamente o coração.
A repetição é a característica essencial do ritual. Ela se distingue da rotina pela sua capacidade de produzir uma intensidade.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 122-138.

Coação de produção

Independência da existência dos seres humanos

“Os rituais são na vida o que as coisas são no espaço. Para Hannah Arendt, é a conservação [Haltbarkeit] das coisas que outorga a elas uma “independência da existência dos seres humanos”. As coisas têm “a tarefa de estabilizar a vida humana”. Sua objetividade consiste em que “apresentem uma mesmidade humana […] à modificação torrencial da vida natural”, ou seja, apresentam uma identidade estabilizante “derivada do fato de que são a mesma cadeira e a mesma mesa que aguardam, com familiaridade permanente, os humanos que se modificam a cada dia”. As coisas são refúgios estabilizadores da vida. Os rituais têm a mesma função. Pela sua mesmidade, sua repetição, estabilizam a vida. Tornam a vida suportável [haltbar]. A coação atual de produção toma das coisas sua conservação. Ela destrói deliberadamente a duração com o intuito de produzir mais e de forçar mais o consumo. A permanência, contudo, pressupõe coisas que durem.

(…) conteúdos midiáticos, que apreendem nossa atenção, são qualquer outra coisa do que conteúdos propriamente ditos. Sua alternância rápida não nos permite permanecer.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 67-79.

Coação de produção

Percepção simbólica

“A percepção simbólica, na condição de reconhecimento, percebe o permanente. O mundo é, desse modo, liberado de sua contingência e ganha algo permanente. O mundo hoje está muito desprovido de simbólico. Dados e informações não possuem força simbólica. Assim, não admite reconhecimento. No vazio simbólico, todas as imagens e metáforas que provocam sentido e comunidade e que estabilizam a vida têm se perdido. A experiência da duração tem diminuindo. E a contingência aumenta radicalmente.

Rituais podem ser definidos como técnicas simbólicas de encasamento. Transformam o estar-no-mundo em um estar-em-casa. Fazem do mundo um local confiável. São no tempo o que uma habitação é no espaço. Fazem o tempo se tornar habitável. Sim, fazem-no viável como uma casa. Ordenam o tempo, mobiliam-no.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 53-56.

Coação de produção

Rituais são ações simbólicas

“Rituais são ações simbólicas. Transmitem e representam todos os valores e ordenamentos que portam uma comunidade. Geram uma comunidade sem comunicação, enquanto hoje predomina uma comunicação sem comunidade.

A percepção simbólica é constitutiva dos rituais. O símbolo (em grego, symbolon) significa originalmente o sinal de reconhecimento entre amizades hóspedes (tessera hospitalis). Um dos amigos quebra a téssera, guardando para si uma metade e dá ao outro amigo a outra como sinal de hospitalidade. O símbolo serve, assim, ao reconhecimento.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 43-45.

Coação de produção

Os rituais

“Os rituais não assinalam, no presente ensaio, um local de saudosismo. Servem, ao contrário, como contraponto perante o qual nosso presente se delineia de modo mais nítido. É sem nostalgia que se esboçará uma genealogia do desaparecimento que, não obstante, não será interpretada como história da emancipação. Ao decorrer disso, serão delineadas patologias do presente, sobretudo a erosão da comunidade.”

HAN, Byung-Chul.O desaparecimento dos rituais: Uma topologia do presente. Ed. Vozes, 2021, Local 38.

Observação prévia

Estar-em-casa

“Os rituais são técnicas de fechamento temporal. Eles transformam o “estar-no-mundo” em “estar-em-casa”. Eles são no tempo o que as coisas são no espaço. Eles estabilizam a vida ao estruturarem o tempo. Eles são arquiteturas temporais. Desta forma, eles tornam o tempo habitável, até mesmo transitável, como uma casa. O tempo hoje carece de uma estrutura sólida. Ele não é uma casa, mas uma tempestade caudalosa. Nada lhe dá uma base de apoio. O tempo, que se avança apressadamente, não é habitável.

Tanto os rituais quanto as coisas do coração são pontos de descanso da vida que a estabilizam. Eles são caracterizados pela repetição. A compulsão da produção e do consumo elimina a repetição. Ela desenvolve a compulsão para o novo.”

HAN, Byung-Chul. Não coisas: Reviravoltas do mundo da vida. Ed. Vozes, 2021, Local 1173-1178.

Coisas do coração

Igreja para Todos

“Desejando abrir a igreja para todos, acolheram membros de todas as camadas sociais, de qualquer origem racial ou cultural, cultos ou iletrados – todos, é evidente, que se submetessem ao seu sistema organizacional. Os bispos opuseram-se àqueles que desafiavam quaisquer dos três elementos do sistema: doutrina, ritual e hierarquia clerical – e os gnósticos questionavam todos eles.”

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 134.

Capítulo: 5- Qual é a “Verdadeira Igreja”?

O Ritual de Redenção

“Essa tradição secreta revela que Deus, a quem a maioria dos cristãos venera, de modo ingênuo, como criador, e Pai, é, na verdade, apenas a imagem do verdadeiro Deus. Segundo Valentino, que Clemente e Inácio descrevem de forma equivocada como Deus na realidade aplica-se apenas ao creator. Valentino, seguindo Platão, utiliza o termo grego para “criador” (demiurgos),  sugerindo um ser menos divino que serve como instrumento de poderes superiores. Não é Deus, explica, porém o demiurgo que governa como rei e senhor, e age como comandante militar,  que legisla e julga aqueles que infringem sua lei  -em suma, ele é o “Deus de Israel”.

(…)

Ao atingir essa gnosis – essa sabedoria- o candidato  está pronto para receber o sacramento secreto conhecido como o sacramento da redenção.

O ritual de redenção, que mudava de forma dramática a relação do iniciado com o demiurgo, modificava, ao mesmo tempo, sua relação com o bispo. Antes, o fiel aprendia a se submeter ao bispo “como ao próprio Deus”, pois, como lhe fora dito, o bispo governa, comanda e julga “no lugar de Deus”. Agora, porém, vê que essas restrições aplicam-se apenas a crentes ingênuos que ainda temem e servem o demiurgo.”

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 40-41.

Capítulo: 2- “Um Deus, Um Bispo”: A Política do Monoteísmo.