“Jung oferece um excelente resumo da opus alquímica numa entrevista de 1952:
A alquimia representa a projeção de um drama ao mesmo tempo cósmico e espiritual em termos de laboratório. A opus magnum tinha duas finalidades: o resgate da alma humana e a salvação do cosmos.... Esse trabalho é difícil e repleto de obstáculos, a opus alquímica é perigosa. Logo no começo, encontramos o “dragão”, o espírito ctônico, o “diabo” ou, como os alquimistas o chamavam, o “negrume”, a nigredo, e esse encontro produz sofrimento… Na linguagem dos alquimistas, a matéria sofre até a nigredo desaparecer, quando a aurora será anunciada pela cauda do pavão (cauda pavonis) e um novo dia nascerá, a leukosis ou albedo. Mas nesse estado de “brancura”, não se vive, na verdadeira acepção da palavra; é uma espécie de estado ideal, abstrato. Para insuflar-lhe vida, deve ter “sangue”, deve possuir aquilo a que os alquimistas denominam a rubedo, a “vermelhidão” da vida. Só a experiência total da vida pode transformar esse estado ideal de albedo num modo de existência plenamente humano. Só o sangue pode reanimar o glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de negrume é dissolvido, em que o diabo deixa de ter existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. Então, a opus magnum está concluída: a salma humana está completamente integrada.
(…) a opus alquímica tem três estágios: nigredo, albedo e rubedo: o escurecimento, o branqueamento e o avermelhamento. Este capítulo trata do primeiro deles, a nigredo ou escurecimento, que pertence à operação denominada mortificatio.
Os dois termos, “mortificatio” e “putrefactio”, são intercambiáveis, referindo-se a aspectos diferentes da mesma operação. A mortificatio não tem nenhuma referência química. Significa, literalmente, “matar”, sendo pertinente, portanto, à experiência da morte. Tal como usada no ascetismo religioso, tem o sentido de “sujeição das paixões e apetites por meio de penitência, abstinência ou de dolorosos rigores infligidos ao corpo”
Putrefactio é “putrefação”, a decomposição que destrói corpos orgânicos mortos. Da mesma maneira como a mortificatio, a putrefactio não é algo que ocorra nas operações da química inorgânica com a qual os alquimistas estavam amplamente envolvidos. Contudo, testemunhar a putrefação de um corpo morto, em particular de um cadáver humano algo pouco comum na Idade Média, era uma experiência capaz de produzir um poderoso impacto psicológico.
A mortificatio é a mais negativa operação da alquimia. Está vinculada ao negrume, à derrota, à tortura, à mutilação, à morte e ao apodrecimento. (…) positivas – crescimento, ressurreição, renascimento; mas a marca registrada da mortificatio é a cor negra. Eis alguns textos exemplificativos:
“Aquilo que não torna negro não torna branco, porque a negrura é o começo da brancura, bem como um indício de putrefação e de que o corpo agora se acha penetrado e mortificado.
Ó feliz portal da negrura, exclama o sábio, que é a passagem para essa mudança tão gloriosa. Estude, pois, todo aquele que se aplicar a essa arte, com o objetivo exclusivo de conhecer seu segredo, porque conhecê-lo é conhecer tudo, mas ignorá-lo é a tudo ignorar. Porque a putrefação precede a geração de toda forma nova de existência.”
A putrefação tem tamanha eficácia que anula a velha natureza, transmuta todas as coisas numa nova natureza, e gera outro fruto novo. Todas as coisas vivas nela morrem, todas as coisas mortas decaem, e depois todas essas coisas mortas, recuperam a vida. A putrefação retira a acridez de todos os espíritos corrosivos do sal, tornando-os suaves e doces.*
Em termos psicológicos, o negrume refere-se à sombra. Por conseguinte, esses textos que falam de modo positivo a respeito estariam aludindo, no nível pessoal, às consequências positivas advindas do fato de se ter consciência da própria sombra. No nível arquetípico, também é desejável ter consciência do mal, “porque a negrura é o começo da brancura”. De acordo com a lei dos opostos, uma intensa consciência de um dos lados constela seu contrário. A partir do negrume, nasce a luz. Em contraste com isso, os sonhos que enfatizam o negrume costumam ocorrer quando o ego consciente se mostra identificado de maneira unilateral com a luz. Por exemplo, um homem branco que era muito ativo no movimento em favor dos direitos civis dos negros teve o seguinte sonho (…)
(…)
O negrume, quando não é a condição original, tem como origem a morte de alguma coisa. Mais comumente, o dragão é o escolhido para morrer (ver figura 6-3). O dragão é uma personificação da psique instintiva”, sendo um dos sinônimos da prima materia. Essa imagem vincula a opus alquímica ao mito do herói que mata o dragão. Da mesma maneira como o herói resgata a donzela cativa do dragão, assim também o alquimista redime a anima mundi de sua prisão na matéria por meio da mortificatio da prima materia. Ou, como diz Jung, “a morte do dragão [é] a mortificatio do estágio inicial, perigoso e venenoso, da anima (= Mercúrio), liberta de sua prisão na prima materia” A mortificatio do estágio inicial, perigoso e venenoso, da anima (as mulheres devem ler “do animus“) é parte importante do processo psicoterapêutico.”
*Comentário a “The Golden Treatise of Hermes”, citado en Atwood, Hermetic Philosophy and Alchemy, pp. 126s.
Paracelso, Hermetic and Alchemical Writings, 1:153.
EDINGER, Edward F. Anatomia da Psique. O Simbolismo Alquímico na Psicoterapia, Ed. Cultrix 2006, Pág. 165-168.
Capítulo 6 Mortificatio Putrefactio