A realização do Si-mesmo

(…) a realização do Si-mesmo, ou o processo de individuação, só atinge a realidade quando se manifesta em cada momento de seu tempo sideral. Muitas pessoas primeiro entendem o que o Si-mesmo é intuitivamente, lendo um livro, ou pela interpretação de um sonho, mas isso não resolve a questão quanto ao que deveriam fazer esta manhã e amanhã à noite, o que significa que isso ainda não se inseriu no tempo. Elas têm uma conexão intuitiva com o Si-mesmo e com a sabedoria do inconsciente, mas não se deu ainda a sua introdução no tempo e no espaço de suas vidas, de suas vidas pessoais.

O Si-mesmo só é real se, em cada momento pelo menos teoricamente, pois na realidade nunca se atinge esse estágio – a pessoa estiver constantemente em ligação com ele, expressando-o constantemente e sabendo o que é. Portanto, pode-se afirmar que o Si-mesmo só se torna real quando é expresso nas ações da pessoa no espaço e no tempo. Antes de ter atingido esse estágio, ele não é inteiramente real, tornando-se então uma coisa movediça.

Por exemplo: o que está certo hoje pode estar errado amanhã, sendo por isso que alguém que atingiu esse estágio de cons-ciência será imprevisível e age sempre de modo diferente nas mesmas situações. Hoje, a coisa é assim e a pessoa reagirá de uma maneira; amanhã ocorrerá a mesma situação e a pessoa reagirá de maneira diferente. Não há mais regras, pois cada momento é diferente e, portanto, o tempo adquire uma qualidade criativa; cada momento do tempo é uma possibilidade criativa e não há mais repetições.

Assim, quando o sol e a lua se unem, começam simultaneamente a percorrer um ciclo que se relaciona com o tempo. Isso é simbolizado na alquimia oriental pelo processo da circulação da luz; depois de ter descoberto a luz interna, ela começa a girar por si mesma. Em O Segredo da Flor de Ouro e na alquimia, isso chama-se circulatio*, a rotação, e existem numerosos textos alquímicos diferentes, nos quais é dito que a pedra filosofal tem de circular. Normalmente, isso está ligado ao simbolismo do tempo, pois esses textos afirmam que a pedra filosofal tem de atravessar o inverno, a primavera, o verão e o outono, ou tem de passar por todas as horas do dia e da noite. Ela tem de circular por todas as qualidades e todos os elementos, ou tem de ir da terra para o céu e voltar de novo à terra. Está sempre presente a ideia de que, depois de ter sido produzida, ela começa a circular.

Psicologicamente, isso significa que o Si-mesmo começa a se manifestar no espaço e no tempo, que não se converte em num certo momento com um retorno algo subsequente ao modo de vida anterior do indivíduo, mas ao contrário, tem efeito imediato sobre a vida toda; portanto, ação e reação estão constantemente de acordo com o Si-mesmo, real e manifesto em seus próprios movimentos, A pedra, ou a nova luz, o Si-mesmo, pode mover-se. Naturalmente, temos de prestar atenção nele, mas se assim fizermos, ele poderá movimentar-se e produzir impulsos autônomos.

*Nota Pessoal: Circulatio: Nome alquímico para Exoconsciência.

Eu afirmaria e isso é muito pessoal que não se trata de uma questão de certo ou errado pois, se estivermos em total harmonia com o Si-mesmo, nada disso importa mais. Se está errado, temos evidentemente de pagar por isso, mas o principal é a conexão, pois a separação significa a morte espiritual. Estar vinculado ao Si-mesmo é a vida espiritual; se ele nos diz para fazermos alguma coisa considerada errada, então todo o mundo nos atacará e, se começarmos pensando que aquilo talvez estivesse errado, ainda poderemos dizer que, apesar de tudo, valeu a pena porque foi em conexão com o Si-mesmo.

Penso que, se uma pessoa faz algo em decorrência de uma ligação viva com o Si-mesmo, então vale a pena pagar o preço, o preço de ser acusada de cometer um erro e de ter de passar, talvez, pelos estágios de pensar que errou. Subjetivamente, nunca pensamos realmente que estamos errados, mas devemos consentir que as pessoas o digam e ser tolerantes. Contudo, se estamos felizes e nos sentimos vivos, isso é a única coisa que ninguém nos pode arrebatar. Se eu digo que estou feliz, o que é que alguém poderá dizer a respeito disso? Se estamos em harmonia com o Si-mesmo, há um sentimento de felicidade e paz absolutas, e os outros podem julgar como thes aprouver, com suas teorias intelectuais destrutivas; isso não causa dano algum, pois sentir-se perto do Si-mesmo torna-se uma coisa indestrutível.

“A luz de tua luz fluirá na minha luz; será como uma mistura de vinho e água, e eu sustarei meu fluxo e depois ficarei encerrada em tua escuridão como tinta, e então coagularei”.

Aqui temos a mistura de duas luzes comparada à mistura de vinho e água, um simbolismo mais conhecido na tradição cristã em que, quando se celebra a Missa, vinho e água são misturados, o que descreve os aspectos humano e espiritual divino de Cristo, Sua humanidade e Seu aspecto espiritual.

O vinho pertence obviamente ao sol e a água à lua, pois a lua é que governa toda as coisas úmidas, de acordo com o antigo modo de ver. É uma ideia da coniunctio num significado amplo e geral, não só na tradição cristã mas também no mundo árabe, a exaltada conexão mística da substância espiritual com a Divindade. Nos poemas aparentemente ébrios de El-Hafis, ou El-Rumi, a água é geralmente um aspecto corruptível, feminino, do fluxo vital e do inconsciente. Se esses dois se unirem, a lua sustará seu fluxo e coagulará; e, de acordo com o final do texto, isso é algo positivo.

Assim sendo, isso significa que, até o momento da coniunctio, a lua fluiu, o que teria a ver com as mudanças constantes das fases lunares, o fluxo constante; mas a lua também produz o orvalho, de acordo com a teoria deles, a umidade e, naturalmente, a menstruação nas mulheres e o fluxo do feminino. Mas como a menstruação cessa quando o filho é o é gerado, há a ideia de que o fluxo é sustado quando os dois luzeiros se unem, dando nasci-mento à nova luz.

(…) Isso diz respeito, direta e imediatamente, ao processo alquímico como um todo, que, como sabemos, é a produção da pedra filosofal, um objeto de substância dura, algo que não flui e que, na alquimia, é o símbolo da Divindade.

É estranho, se olharmos isso com simplicidade, que na alquimia, o produto final seja algo na ordem da natureza que consideramos em nível muito baixo, uma pedra, algo cuja qualidade consiste simplesmente em existir. Uma pedra não come nem bebe nem dorme, permanece meramente onde estiver por toda a eternidade. Se lhe damos um pontapé, ela fica onde tiver sido jogada e não se mexe. Mas na alquimia essa coisa desprezada é o símbolo da meta suprema.”

 

VON FRANZ, Marie-Louise. Alquimia, Uma introdução ao simbolismo e seu significado na psicologia de Carl G. Jung, Ed. Cultrix 2022, Pág 273-278.

6a Palestra | Alquimia Arábica

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