Dialética da dor

“Espírito é dor. O espírito só chega a um conhecimento novo, a uma forma mais elevada de saber e de consciência por meio da dor. O espírito designa, segundo Hegel, a capacidade de “se sustentar […] na contradição, por conseguinte, na dor”. Em seu percurso formativo, o espírito entra em contradição consigo mesmo. Ele se cinde. Mas a dor assegura que o espírito se forme. A formação pressupõe a negatividade da dor. O espírito supera a contradição dolorosa se desenvolvendo em uma forma mais elevada. A dor é o motor da formação dialética do espírito.

O espírito “conquista a sua verdade apenas ao encontrar a si mesmo na completa dilaceração”. O seu poder se revela no fato de que ele “encara de frente o negativo” e “se demora nele”. O “positivo que olha para longe do negativo” definha, em contrapartida, no “ser morto”. Apenas a negatividade da dor mantém o espírito vivo. Dor é vida.

A negatividade da dor é constitutiva para o pensamento. É a dor que distingue o pensamento do cálculo, da inteligência artificial. Inteligência significa escolher entre (inter-legere). Ela é uma faculdade de distinção. Desse modo, ela não abandona o já existente. Ela não consegue gerar o inteiramente outro. Nisso, ela se distingue do espírito. A dor aprofunda o pensamento. Não há um cálculo profundo. No que consiste a profundidade do pensamento? Em oposição ao cálculo, o pensamento gera uma visão inteiramente diferente do mundo, sim, um mundo diferente. Apenas o vivo, a vida capaz de sentir dor, consegue pensar. Falta à inteligência artificial, justamente, essa vida:

A inteligência artificial é apenas um aparelho de cálculo. Ela é, de fato, capaz de aprender, também capaz de deep learning [aprendizado profundo], mas ela não é capaz de [ter] experiência. Apenas a dor metamorfoseia a inteligência em espírito. Não haverá nenhum algoritmo da dor.

Nietzsche imagina um tipo superior de saúde, que incorpora a dor em si mesma. “E, no que diz respeito à minha longa enfermidade, não devo a ela indizivelmente mais do que à minha saúde? Eu devo a ela uma saúde superior, uma saúde que se torna mais forte diante de tudo que não a mata! – Também devo a ela minha filosofia…” Nietzsche remete mesmo a sua transvaloração de todos os valores à dor. A dor estremece as referências de sentido habituais e obriga o espírito a uma mudança radical de perspectiva, que faz com que tudo apareça sob uma nova luz. Em oposição ao prazer, a dor põe em movimento um processo de reflexão. Ela fornece para o espírito uma “clareza dialética por excelência”. Ela torna o espírito clarividente.

A sociedade paliativa foge desesperadamente do negativo, em vez de se demorar nele. O aferrar-se ao positivo reproduz o igual.”

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: A dor hoje. Ed. Vozes, 2021, Local, 658-707.

Dialética da dor

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