“Os cravos estão exatamente na dobra de flexão do punho, os polegares em oposição nas palmas e em ligeira flexão. Por acréscimo, os dois pés estão pregados diretamente sobre a haste vertical da cruz, e o direito por trás do esquerdo.
(…)
(…) os textos sagrados, aos quais devemos toda nossa submissão, não são tão explícitos. Não falam de palmas, mas de mãos. Aos anatomistas compete dizer o que é a mão. Em todos os tempos e em todos os países se entendem muito bem sobre a questão: a mão se compõe do carpo, metacarpo e dedos.
(…)
Sobre o dorso da mão esquerda que passa adiante da outra, vê-se pelo contrário uma chaga das mais nítidas, que se pode estudar em todas as suas minúcias. Está formada por uma imagem arredondada, de onde parte abundante fluxo de sangue, que torna a subir obliquamente para o alto e para fora. (…) Um outro fluxo mais tênue e recortado remontou a cotovelo, Seguiu, ao que parece, um sulco por entre dois grupos musculares extensores; de trecho em trecho escapava para o bordo cubital, no sentido da gravidade.
Na cruz, a grande hemorragia principal era, está claro, vertical, seguindo a lei da gravidade. Pôde-se calcular, de acordo com o ângulo deste fluxo com o eixo do antebraço, qual era a obliquidade deste em relação à cruz. Fazia com a vertical um ângulo de cerca de de 65°.
(…)
Que me perdoem todos esses algarismos! Queria encarar o problema sob todos os seus aspectos; depois disso, podemos dizer que a anatomia e a geometria estão de acordo: tudo concorre a me fazer pensar que os braços foram cravados mais ou menos transversalmente e depois desceram até os 65°.- E foi precisamente este ângulo que medi na Santa Mortalha.
(…) eu mesmo crucifiquei um cadáver para verificar essas angulações, estendi-lhe os braços mais ou menos transversalmente sobre os braços da cruz, sem medir ângulo algum, rapidamente, como um bruto carrasco com pressa de acabar sua tarefa, e os preguei em poucos segundos. E ao erguer a cruz à vertical esses braços tomaram, por si mesmos, um ângulo que eu medi e que era exatamente 65°.
Quando se olha mais de perto o punho esquerdo estampado no Santo Sudário, percebe-se que há dois fluxos principais de sangue, oriundos de uma mesma zona central que é a chaga do cravo. Esses dois fluxos, ligeiramente divergentes, formam um ângulo de cerca de 5°. Bastante meditei sobre esta imagem estranha (são estas as mas instrutivas e as mais verdadeiras em todo este estudo) sem conseguir descobrir-lhes a significação. Creio que hoje descobri, atribuindo os fluxos à mudança da posição do corpo.
(…) que a suspensão pelas mãos provoca nos crucificados um conjunto de cãibras, de contrações que se vão generalizando até o que chamamos de “tetania”. Atinge ela, por fim, os músculos inspiradores, impedindo a expiração; os supliciados, não mais podendo esvaziar os pulmões morrem por asfixia. Podem, no entanto, escapar momentaneamente esta tetania e à consequente asfixia, soerguendo o carpo mediante apoio nos pés. Neste momento, os joelhos e os quadris se alongam, o corpo remonta e por conseguinte o ângulo dos antebraços com a vertical aumenta ligeiramente, aproximando-se do ângulo reto primitivo. O corpo passa então alternativamente durante a agonia por uma posição de abatimento e asfixia, e por outra de soerguimento e alívio.
(…)
Fiz a seguinte experiência: acabando de amputar um braço no terço superior, de um homem vigoroso, enterrei meu cravo de 8 mm de lado a lado (igual ao cravo da Paixão) em plena palma no 3º espaço. Suspendi devagarinho ao cotovelo 40 quilos (isto é, metade do peso de um homem que tivesse cerca de 1,80 m). Depois de 10 minutos, a chaga se havia esticado, e o cravo estava na altura das cabeças metacarpianas. Dei então uma sacudidela muito moderada no conjunto e vi o cravo franquear bruscamente o ponto do espaço retraído pelas duas cabeças metacarpianas e dilacerar bastante a pele até a comissura. Uma segunda ligeira sacudidela fê-lo arrancar o que restava da pele.
(…)
(…) os cravos eram o processo mais frequente, ainda para os escravos. As cordas eram mais raras, salvo para alguns países como o Egito. Que se tenha alguma vez associado cordas e cravos é coisa que texto algum sugere; e, como isto seria inútil, creio que o podemos negar ousadamente.
(…)
Podemos agora reconstituir muito exatamente a crucifixão, tal qual foi feita. O patíbulo (isto é, a trave horizontal da cruz), carregado ao local do suplicio pelo condenado, era lançado à terra, para, em seguida, ser o réu estendido sobre ele. Os braços esticados pelos carrascos ficam naturalmente paralelos ao patíbulo, fazendo um ângulo de 90° com o corpo. Os carrascos tomam as medidas e, com qualquer instrumento perfurador, esboçam os buracos na trave. Quanto às mãos, bem o sabem eles, será mais fácil perfurar; mas na madeira os cravos entram com menos facilidade. Depois, cravam uma das mãos, puxam a outra e a cravam também. O corpo de Nosso Senhor já reproduz o T da cruz, formando os braços e o patíbulo um ângulo de 90° em relação ao corpo.
(…)
Colocam então o paciente de pé, erguendo as duas extremidades do patíbulo, que içam até enganchá-lo no alto da haste vertical da cruz o que vem a constituir a cruz em Tau. Neste momento o corpo se aba te, alongando os braços que passam de 90° a 65°. Não falta senão pregar os dois pés, como o veremos, um sobre o outro, com um único cravo, dobrando os joelhos que logo tomam sua posição de abatimento, Formam os joelhos um ângulo posterior de cerca de 120%; os quadris e os tarsos formam um ângulo anterior de mais ou menos 150°.
Quando, para escapar à asfixia, o corpo se apoiando-se sobre o cravo dos pés, os braços voltarão para a mas, segundo o Sudário, não ultrapassarão os 70°. Ao mesmo tempo, os ângulos dos joelhos, dos quadris e dos tarsos se abrirão.
(…)
Mas já verificamos, e ainda veremos para os pés e para o coração, como todas as imagens sanguíneas coincidem, sem exceção, e de modo espantosamente precioso, com a realidade anatômica. É este conjunto cerrado, digamos até, esta unanimidade de veracidade que constitui uma presunção de verdade equivalente a uma certeza. Se houvesse, ali, uma única exceção, poderia hesitar e não conceder à Mortalha uma confiança que aumentava à proporção que ia fazendo minhas experiências. Ainda mais se firmou esta confiança quando vi o coágulo do punho, em vez de provocar um só fluxo de sangue vertical, apresentar nitidamente dois, separados como estão por uma distância angular. Isto coincide manifestamente com o que sabemos experimentalmente da morte por asfixia e dos esforços de soerguimento feitos pelo Crucificado. Seria necessário vazar os próprios olhos para não ver em todas essas imagens sanguíneas o puro reflexo da realidade.
(…)
(…) toda essas imagens sanguíneas não podem ser outra coisa senão decalques de coágulo e de forma nenhuma manchas de tinta. Passo a resumir minha demonstração: têm estes coágulos um aspecto de verdade e uma naturalidade tal que somente a natureza os teria feito assim, e nós os podemos reconhecer como quem reconhece antigos conhecidos. Somente eles ao se decalcarem é que poderiam ter produzido imagens tão exatas. Lembremos que, só para imaginá-las, antes até de as pintar, seria necessário um conhecimento verdadeiramente profundo da fisiologia sanguínea, e astúcia incrível para evitar todo e qualquer deslize denunciador do falsário, que não poderia pensar em tudo. Por fim, executar uma pintura com um colorante qualquer, ainda e sobretudo com sangue, teria como resultado tão somente manchas de contornos difusos irregulares, sem bordos nítidos e sem a infinita delicadeza nem a minúcia espantosa de detalhes que apresentam as imagens do Santo Sudário.
(…)
Existe, portanto, ali uma passagem anatômica preformada, normal, um caminho natural, em que o prego passa facilmente, onde é mantido muito solidamente pelos ossos do carpo, estreitamente fixa dos por seus ligamentos distendidos pelo ligamento anular anterior, sobre cujo bordo superior repousa.
(…)
Seria possível que carrascos treinados não tivessem conhecido empiricamente este lugar apropriado para a crucifixão das mãos, que reúne tantas vantagens e é tão fácil de encontrar? A resposta é clara. E é precisamente ali que a Santa Mortalha nos mostra o sinal do cravo, ali onde nenhum falsário teria tido jamais a ideia nem a ousadia de o representar.
Estas experiências, porém, me reservariam ainda uma outra surpresa. Operava eu, e nisto insisto, sobre mãos vivas ainda, logo após a amputação do braço. Ora, verifiquei, desde a primeira vez e regularmente nas seguintes, que no momento em que o cravo atravessava as partes moles anteriores, estando a palma para cima, o polegar se do brava bruscamente e, sobretudo, se opunha na palma, pela contração dos músculos tenarianos, ao mesmo tempo que os quatro dedos se dobravam muito ligeiramente; provavelmente por excitação mecânica dos tendões longoflexores.
(…)
Jesus Cristo, portanto, agonizou, morreu e se fixou na rigidez cadavérica, com os polegares opostos nas palmas. Eis por que, no Sudário, as duas mãos vistas pelo dorso não apresentam senão quatro dedos, porque os dois polegares estão escondidos nas palmas.”
BARBET, Pierre. A Paixão de Cristo, segundo o cirurgião. São Paulo: Edições Loyola, 2014, pág. 109-126.