Ontologia da dor

“Apenas a poesia deixa registrar aquele silêncio sem som, aquele resto cantável que irrompe silenciosamente através da palavra ressoante. A poesia restitui o legível ao ilegível do qual ele provém.

A dor é o rasgo por meio do qual o silêncio, o lá fora indisponível, irrompe no pensamento.

A dor é uma disposição fundamental da finitude humana. Heidegger a pensa a partir da morte: “A dor é a morte no pequeno – a morte, a dor no grande”[75]

O Eros é o desejo pelo outro que se furta ao meu acesso.

Morte e dor não pertencem à ordem digital. Elas representam apenas perturbações. Também luto e saudade [Sehnsucht] são suspeitos. A dor da proximidade da distância é estranha à ordem digital. A distância está inscrita na proximidade. A ordem digital aplaina a proximidade em ausência de distanciamento, de modo que ela não doa. Sob a coação da disponibilidade, tudo é tornado alcançável e consumível. O habitus digital enuncia: tudo tem de estar imediatamente disponível. O télos da ordem digital é a total disponibilização. Falta a ela a “lentidão da timidez hesitante diante do infactível”

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: A dor hoje. Ed. Vozes, 2021, Local, 776-813.

Ontologia da dor

Poética da dor

“O belo é a contracor da dor. Em vista da dor, o espírito imagina o belo. Ele opõe à deformação dolorosa a cura. A bela aparência tranquiliza o espírito. A dor leva o espírito a erguer um contramundo curativo diante do [mundo] existente, [contramundo] com o qual se pode viver.

crise da literatura. A literatura não é mais, segundo seu ponto de vista, capaz de produzir uma nova linguagem: “Há dez ou vinte anos não acontece mais praticamente nada na literatura. Há uma enxurrada de publicações, mas uma estagnação espiritual. A causa é uma crise da comunicação. Os novos meios de comunicação são dignos de admiração, mas causam um barulho inominável”. O barulho de comunicação prolonga o inferno do igual. Ele impede que aconteça algo inteiramente outro, inteiramente incomparável ou que nunca se viu antes.

Hoje, não estamos dispostos a nos expor à dor. A dor, entretanto, é uma parteira do novo, uma parteira do inteiramente outro. A negatividade da dor interrompe o igual. Na sociedade paliativa como inferno do igual, nenhuma fala da dor, nenhuma poética da dor é possível. Ela permite apenas a prosa do bem-estar, a saber, a escrita à luz do sol.”

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: A dor hoje. Ed. Vozes, 2021, Local, 611-639.

Poética da dor

Dor é vínculo

“Em seu ensaio As dores, Viktor von Weizsäcker caracteriza a dor como uma “verdade que se tornou carne”, como um “tornar-se carne da verdade”.

Apenas verdades doem. Tudo que é verdadeiro é doloroso. A sociedade paliativa é uma sociedade sem verdade, um inferno do igual.

A dor só pode surgir lá onde um verdadeiro pertencimento é ameaçado. Sem a dor somos, então, cegos, incapazes de verdade ou de conhecimento:

Dor é vínculo. Quem recusa todo estado doloroso é incapaz de vínculos. Vínculos intensivos que poderiam doer são, hoje, evitados. Tudo se desenrola em uma zona de conforto paliativa. Em seu livro Elogio do amor, Alain Badiou aponta para o anúncio de um site de relacionamentos: “É muito fácil estar apaixonado sem sofrer!” O outro como dor desaparece. O amor como consumo, que coisifica o outro em um objeto sexual, não dói.

A dor acentua a autopercepção. Ela delineia o si. Ela desenha seus contornos. O crescente comportamento autoagressivo pode ser compreendido como uma tentativa desesperada do eu narcísico e tornado depressivo de se assegurar de si mesmo, de se perceber. Sinto dor, logo existo.”

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: A dor hoje. Ed. Vozes, 2021, Local, 532-569.

A dor como verdade

Astúcia da dor

“(…) o tédio não é senão a dissolução da dor no tempo”

A violência também é o excesso de positividade que se manifesta como hiperdesempenho, hipercomunicação e hiperestimulação. A violência da positividade leva a dores de sobrecarga. Algógenas são, hoje, sobretudo aquelas tensões físicas que são características para a sociedade do desempenho neoliberal. Elas indicam traços autoagressivos. O sujeito de desempenho comete violência consigo próprio. Ele explora a si mesmo voluntariamente, até que ele desmorone. O servo tira o chicote da mão do senhor e chicoteia a si próprio para se tornar senhor, sim, para ser livre. O sujeito do desempenho está em guerra consigo mesmo. As pressões internas que surgem aí o derrubam em depressão. Elas também causam dores crônicas.

Para dores, a solidão e a experiência de proximidade faltante funcionam como um amplificador. Talvez dores crônicas como aqueles cortes autoinduzidos sejam um grito do corpo por atenção [Zuwendung] e por proximidade, sim, pelo amor, uma indicação eloquente de que, hoje, dificilmente ocorrem contatos. Falta-nos, evidentemente, a curadora mão do outro.

Não por último é o vazio de sentido da sociedade atual que faz as dores crônicas insuportáveis. Elas refletem a nossa sociedade esvaziada de sentido, o nosso tempo sem narrativa, no qual a vida se tornou uma sobrevivência nua. Analgésicos ou pesquisas psicológicas não conseguem fazer muito aqui. Eles apenas nos tornam cegos diante das causas socioculturais da dor.”

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: A dor hoje. Ed. Vozes, 2021, Local, 483-516.

Astúcia da dor

Ausência de sentido da dor

“Uma marca fundamental da experiência de dor atual consiste em a dor ser percebida como desprovida de sentido. Não há mais referências de sentido que, em vista da dor, deem suporte e orientação. A arte de sofrer a dor se perdeu inteiramente para nós. A medicalização e a farmacologização exclusivas da dor destroem o “programa cultural da superação da dor”[27]. A dor é, agora, um mal sem sentido, que deve ser combatido com analgésicos. Como mera aflição corporal, ela cai inteiramente fora da ordem simbólica.

Monsieur Teste se cala em vista da dor. A dor lhe rouba a fala. Ela destrói para ele o mundo e o encapsula no corpo mudo. A mística cristã Teresa de Ávila pode ser indicada como uma contrafigura de Monsieur Teste. Nela, a dor é extremamente eloquente. Com a dor começa a narrativa. A narrativa cristã verbaliza a dor e transforma também o corpo da mística em um palco. A dor aprofunda a relação com Deus. Ela produz uma intimidade, uma intensidade.

(…) nem eu poderia me contentar com algo menos do que com Deus.

Nota: Teresa D’ÁVila

Segundo Freud, a dor é um sintoma que indica um bloqueio na história de uma pessoa. O paciente, por causa de seu bloqueio, não está em condições de avançar na história. Dores psicogênicas são expressões de palavras soterradas, reprimidas. A palavra se tornou coisal [dinghaft]. A terapia consiste em libertar a pessoa desse bloqueio de falar, tornar a sua história novamente fluida.

A ausência de sentido da dor aponta, antes, para o fato de que a nossa vida, reduzida a um processo biológico, é ela mesma esvaziada de sentido. O ser dotado de sentido [Sinnhaftigkeit] da dor pressupõe uma narrativa que insere a vida em um horizonte de sentido. A dor sem sentido é possível apenas em uma vida nua esvaziada de sentido, que não narra mais.

Parte, das narrativas, uma força curativa: “A criança está doente. A mãe a traz para a cama e se senta ao seu lado. E então ela começa a lhe contar histórias”[33]. Benjamin pensa que a narrativa que o doente confia ao médico no início de seu tratamento introduz o processo de cura. Benjamin se pergunta “se toda doença não seria curável, se ela apenas se deixasse fluir longe o bastante, até a boca, no fluxo do narrar”. A dor é uma “barragem” que, a princípio, resiste ao fluxo da narrativa.”

HAN, Byung-Chul. Sociedade paliativa: A dor hoje. Ed. Vozes, 2021, Local, 342-394.

Ausência de sentido da dor

Enfermidades e Poder Mental

“A doença consiste numa condição desarmônica que produz dor ou infelicidade num ser vivo, seja de modo imediato ou tardio. Os seres humanos estão sujeitos a três tipos de enfermidade: aquelas que afetam o corpo, as que afetam a mente e aquela que afeta a alma.

(…)

A dor física não traz sofrimento mental se a mente é poderosa; os mártires, com a mente fixa em sua devoção a Deus, mantiveram sua serenidade interior mesmo enquanto eram queimados vivos.

(…)

Jesus conhecia a relação causal entre a mente e o corpo e entre a alma e Deus. Desse modo, ele era capaz de controlar a estrutura atômica das células e harmonizar as perturbações psicológicas, restaurando assim qualquer corpo ou mente doentes.”

YOGANANDA, Paramahansa. A Segunda Vinda de Cristo, A Ressurreição do Cristo Interior. Comentário Revelador dos Ensinamentos Originais de Jesus. Vol. I. Editora Self, 2017, pág. 456-457.

Capítulo 25: A cura dos doentes.

O Medo é Um Veneno Mental

“O medo é um veneno mental quando não usado como antídoto — um estímulo para induzir a pessoa a acalmarse e ter cautela.”

(…)

“O medo intensifica e multiplica por cem nossa dor física e agonias mentais.”

(…)

“Se você for incapaz de desalojar o medo terrível do fracasso ou da má saúde, distraia a mente (…)”

(…)

“Ao contrário, tenha medo de ter medo, pois ele criará uma consciência de doença e acidente — e, se o medo for forte o bastante, você atrairá exatamente aquilo que mais teme.”

YOGANANDA, Paramahansa. Como Despertar Seu Verdadeiro Potencial. Ed. Pensamento. Versão Kindle, 2019, Posição 254-265.

O Esforço por Plenitude Resulta da Ilusão

“A emancipação é acelerada quando se encena o drama vivo de uma perfeita existência de saúde, abundância e sabedoria, com desa pegada transcendência mental. As dualidades da dor e do sofrimento criadas por Satã são em muito atenuadas pela mente forte que não exacerba o sofrimento por meio do medo ou de uma imaginação exal tada; ou seja, se pudermos afastar a consciência de doença e não temer a enfermidade quando ela se apresenta, e se não ansiarmos pela saúde ao sofrermos com alguma doença, isto nos ajudará a recordar nossa própria alma, o Eu transcendente que jamais experimentou as flutuações de saúde e doença, mas é sempre perfeito.

O homem deveria saber que seu esforço por plenitude resulta da ilusão; pois ele já possui tudo que ne cessita em seu poderoso Eu interior. Ele equivocadamente imagina que carece de tais dons divinos ao identificar-se com mortais espiritual mente ignorantes. Tudo o que necessita é conhecer a eterna plenitude do tesouro de sua alma.”

YOGANANDA, Paramahansa. A Segunda Vinda de Cristo, A Ressurreição do Cristo Interior. Comentário Revelador dos Ensinamentos Originais de Jesus. Vol. I. Editora Self, 2017, pág. 165-166.

Capítulo 7: O papel de Sată na criação de Deus.

O Mal na Vida do Ser Humano

“Nesse sentido, é certamente verdade que o mal na vida do ser humano é autoengendrado: se um homem golpeasse uma parede de pedras com seus punhos, o inegável resultado maléfico da dor não seria produzido ou desejado pela parede, mas a consequência da ignorância dele ao golpear a dureza naturalmente inflexível das pedras.

Igualmente, pode-se dizer que Deus é a parede de pedra da Bondade Eterna. Seu universo subsiste pela operação de leis justas e naturais. Todo aquele que seja suficientemente tolo para utilizar de modo impróprio sua inteligência, agindo contra essa bondade, produzirá inexoravelmente o mal da dor e do sofrimento não devido a qual quer intenção ou desejo de Deus, mas às formas perniciosas de vida colidindo com os eternos princípios do bem, subjacentes a todas as coisas em Deus.”

Nota: O aspecto de Deus que é ativo na criação; a shakti, ou poder, do Criador Transcendente. Neste contexto, a referência se faz ao aspecto pessoal de Deus que incorpora as qualidades maternais do amor e da compaixão. As escrituras hindus ensinam que Deus é tanto imanente quanto transcendente, pessoal e impessoal. Ele pode ser como o Absoluto Transcendente; mas, conforme enfatiza o Bhagavad Gita (XII:5): “Aqueles que têm o Não-manifestado como meta aumentam as dificuldades; árduo é o caminho do Absoluto para os seres encarnados”. Para a maioria dos devotos, é mais fácil procurar Deus como uma de Suas eternas qualidades manifestadas, tais como amor, sabedoria, bem-aventurança, luz; na forma de um ishta (deidade); ou como Pai, Mãe ou Amigo. Outras denominações para o aspecto materno da Divindade são Om, procurado Shakti, Espírito Santo, Vibração Cósmica Inteligente, Natureza ou Prakriti.

YOGANANDA, Paramahansa. A Segunda Vinda de Cristo, A Ressurreição do Cristo Interior. Comentário Revelador dos Ensinamentos Originais de Jesus. Vol. I. Editora Self, 2017, pág. 149-150.

Capítulo 7: O papel de Sată na criação de Deus.

Efeitos Físicos ao Pregar as Mãos

“(…) O nervo mediano seria ferido, causando uma dolorosa reação chamada causalgia. (…) Essa síndrome era comumente vista durante os anos de guerra em soldados feridos no nervo mediano e em outros nervos periféricos. A dor é incomum e descrita como intermitente, com uma queimadura que é tão intensa que o mínimo contato físico, como colocar uma roupa ou a passagem de uma corrente sensação de completa tortura. A condição é agravada com movimento do corpo, perturbação, barulho ou emoção. A dor atravessa os braços como se fosse um raio elétrico. O paciente passa a evitar qualquer contato e começa a segurar o braço de uma forma particular. Essa condição pode destruir completamente a disposição do indivíduo mais estoico. Um estudo feito por Slesser revelou que a dor piora com o aumento da temperatura e nenhum dos pacientes consegue tolerar os raios solares. (…) Antes desse tratamento, inúmeros indivíduos se tornaram viciados em analgésicos e muitos cometeram suicídio. As vítimas de causalgia frequentemente entram em estado de choque se a dor não for controlada.

Além disso, o próprio ato de ser levantado com a barra horizontal e colocado no encaixe no topo da estaca traria ainda mais dor, em razão da tração das mãos contra os pregos. A alta temperatura e a exposição ao sol aumentariam ainda mais o sofrimento. O levantamento da barra horizontal teria provocado uma dor brutal a Jesus e um aumento no grau do choque traumático.

(…)

Jesus estava em estado de prematuro choque traumático e hipovolêmico a quando chegou ao Gólgota. As brutais dores provocadas pelos pregos em suas mãos e pés somaram-se a todas as lancinantes dores causadas pela proveniente dos nervos medianos e plantares, ao severo trauma na caixa torácica, ao trauma no pulmão e alta possibilidade de pneumotórax e hemorragias pulmonares decorrentes do brutal açoitamento, às dores da neuralgia do trigêmeo e à perda de fluidos por causa da crescente efusão pleural. O suor abundante e a perda de sangue devem ter aumentado o Seu grau de choque, causando-lhe tortura e falta de ar. Seu batimento cardíaco se acelerou e Seu coração iria bater fortemente contra o peito para compensar a perda de fluido e o grau de choque. A dor também seria acentuada por causa da profunda fadiga. Monheim escreve: “Um fator importante no limiar da dor de um paciente é a fadiga. Já foi definitivamente provado que um paciente que se encontra descansado e teve uma boa noite de sono antes de um acontecimento desagradável vai ter uma resistência maior à dor do que aquele que está extenuado”. Como você sabe, Jesus ficou de pé durante quase toda a noite depois de sua agonia mental no Jardim do Getsêmani, e sofreu uma série de episódios traumáticos Depois de tudo isso, ele se encontrava extremamente exaurida experimentando dores ubíquas e num estado de choque crescente.

Figura: 6-25

“Suspensão experimental na cruz. Posição típica de suspensão. O voluntário é constantemente monitorado durante o procedimento.”

Figura: 6-26

“Suspensão experimental na cruz, com arqueamento. A posição arqueada era tipicamente assumida para aliviar a tensão nos ombros e para estender as pernas a fim de aliviar as cãibras.”

ZUGIBE, M.D, Ph.D. Frederick T.  A Crucificação de Jesus: As Conclusões surpreendentes sobre a morte de Cristo na visão de um investigador criminal. São Paulo: MATRIX, 2008, pág. 120-130.