Uma Nova Abordagem das Questões

“Orígenes, o mais brilhante teólogo do século III, expressou, embora tenha sido suspeito de heresia, o ponto de vista ortodoxo ao declarar que Deus não teria oferecido um caminho para a salvação acessível somente à elite intelectual ou espiritualizada. O que a igreja ensina, afirma, deve ser simples, unânime e acessível a todos.

(…)

Quando Muhammad ‘Ali quebrou aquele jarro cheio de papiros no penhasco próximo a Nag Hammadi e desapontou-se por não encontrar ouro, jamais poderia imaginar as implicações dessa descoberta acidental. Caso tivessem sido achados mil anos antes, os textos gnósticos, provavelmente, teriam sido queimados como hereges. Mas eles permaneceram escondidos até o século XX, quando nossa experiência cultural nos proporcionara uma nova abordagem das questões que eles suscitariam.”

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 167-168.

Capítulo: Conclusão.

A Libertação

O gnosticismo e a ortodoxia articularam tipos muito diferentes de experiência humana; suspeito que eles atraíssem pessoas distintas.

(…)

O que pode trazer a libertação? Os gnósticos convenceram-se de gue a única forma de libertar-se do sofrimento era conhecer a verdade sobre o lugar e o destino da humanidade no universo. Certo de que as únicas respostas seriam
encontradas em si mesmo, o gnóstico dedicou-se com afinco a empreender uma intensa jornada particular interna.

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 162-163.

Capítulo: Conclusão.

Instruções Secretas

Entretanto, muitos ensinamentos gnósticos sobre disciplina espiritual não foram, em princípio, escritos pois qualquer um pode ler um texto – mesmo aqueles que não são “maduros”. Os professores gnósticos, em geral, não revelavam sua instrução secreta, partilhando-a apenas verbalmente, para garantir a adequabilidade de cada candidato para recebê-la. Essa instrução requeria de cada professor a responsabilidade de conferir ao candidato uma atenção altamente selecionada e individualizada. Por sua vez, o candidato precisava devotar energia e tempo – quase sempre anos– ao processo.

Obviamente, esse  programa de disciplina, assim como os níveis mais elevados do ensinamento budista, atraía poucos adeptos. Embora os temas mais relevantes do ensinamento gnóstico como a descoberta do divino dentro de si mesmo seduzissem tantas pessoas a ponto de constituírem uma grande ameaça à doutrina católica, as perspectivas religiosas e os métodos do gnosticismo não eram voltados para a religião de massa.

(…)somente idéias não asseguram poder religioso, embora este não possa ter êxito sem elas; as estruturas sociais e políticas são igualmente importantes para identificar e unir pessoas em uma afiliação comum.”

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 159-160.

Capítulo: 6- Gnosis: Autoconhecimento Como Conhecimento de Deus.

Significado Não Literal

Seus discípulos disseram a ele: “Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram em vós. Ele lhes disse: “Vocês ignoraram o que vive em sua presença e falaram (apenas) dos mortos. *(Evangelho de Tomé42.l3-l8, em NHL 124.)

Esses cristãos gnósticos viam os acontecimentos reais como secundários à percepção do seu significado.

Por essa razão, esse tipo de gnosticismo partilha com a psicoterapia uma fascinação pelo significado não-literal da linguagem, como uma tentativa de entender a qualidade interna da experiência.

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 151.

Capítulo: 6- Gnosis: Autoconhecimento Como Conhecimento de Deus.

Quando Encontrar, Ficará Perturbado

“Muitos gnósticos têm em comum com a psicoterapia uma segunda premissa importante: ambos concordam – em oposição ao cristianismo ortodoxo – que a psique possui dentro de si o potencial para liberar-se ou destruir-se. Poucos psiquiatras discordariam das palavras atribuídas a Jesus no Evangelho de Tomé.

Se revelar o que possui dentro de si, será salvo. Se não o desvelar, será destruído.” *(Evangelho de Tomé 45.30-33, em NHL 126)

(…)

Então Jesus (que disse “Eu sou o conhecimento da verdade”)” declara que quando veio ao mundo

encontrei-os entorpecidos; nenhum deles sedento. E minha alma tornou-se aflita pelos filhos dos homens, por serem cegos em seus corações e não terem visão; do vazio vieram ao mundo e vazios deixam o mundo. Mas, por enquanto, estão entorpecidos. *(Evangelho de Tomé38.23-29, em NHL 121. Para uma discussão dessas metáforas, ver H. Jonas, The Gnostic Religion (Boston, 1963), 48-96, e G. MacRae, “Sleep and Awakening in Gnostic Texts”, em Le Origini de/lo Gnosticismo, 496-507)

O Evangelho de Tomé também adverte que o autoconhecimento envolve uma perturbação interior:

Jesus disse “Deixe aquele que busca continuar buscando até que encontre Quando encontrar, ficará perturbado. Quando se tornar aflito, será surpreendido e reinará acima de tudo.” *(Evangelho de Tomé 32.14-19, em NHL 118)

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 143-144.

Capítulo: 6- Gnosis: Autoconhecimento Como Conhecimento de Deus.

Filho do Homem

Mas Valentino não usa essa expressão em seu sentido contemporâneo, referindo-se à humanidade em termos coletivos. Em vez disso, ele e seus seguidores pensavam em Anthropos (aqui traduzido como “humanidade”) como a natureza subjacente dessa entidade coletiva, o arquétipo, ou a essência espiritual do ser humano. Nesse sentido, alguns dos seguidores de Valentino, “aqueles (…) considerados mais talentosos” que os demais, concordavam com o professor Colorbasus, que disse que quando Deus se revelou, Ele revelou-se na forma do Anthropos. No entanto, outros, relata Irineu, asseveraram que

o pai primal de todos, o começo primal e o inescrutável primal é chamado Anthropos (…) e isso é o grande e obscuro mistério, ou seja, o poder que está acima de todos os outros e os envolve em seu abraço é chamado Anthropos. *(Ibid., 1.12.3)

Por essa razão, diziam os gnósticos, o Salvador denominava- se “Filho do Homem” (isto é, Filho do Anthropo).

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 139.

Capítulo: 6- Gnosis: Autoconhecimento Como Conhecimento de Deus.

O Acolhimento dos Hereges

“Tertuliano (…) Lamentava que os hereges acolhessem todos que aderissem a eles, “porque não se importam com seus diferentes tratamentos dos tópicos”, desde que houvesse consenso para acessar “a cidade de uma única verdade”. Contudo, essa metáfora indica que os gnósticos não eram nem relativistas nem céticos.” *(Tertuliano, DE PRAESCR. 7.)

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 115.

Capítulo: 5- Qual é a “Verdadeira Igreja”?

Conhece-te a Ti Mesmo

“O conformismo à norma da fé limitava todos os cristãos a uma ideologia inferior: “Eles dizem: “[Mesmo que] um [anjo] venha do céu e pregue a você além daquilo que nós pregamos, deixe-o ser excomungado!” A fé nos sacramentos demonstra um pensamento ingênuo e irracional: os cristãos católicos praticam o batismo como um rito de iniciação que lhes garante “uma esperança de salvação”,” por lhes acreditarem que só aqueles que recebem o batismo são “guiados para a vida”.

Contra essas “mentiras” o gnóstico declara que “isto, portanto, é o verdadeiro testemunho: quando um homem conhece a si mesmo e Deus está acima da verdade, ele se salvará”.” Apenas aqueles que reconhecem sua ignorância e aprendem a libertar-se pela descoberta de quem são vivenciam a iluminação como uma nova vida, como “a ressurreição. Os rituais físicos como o batismo são irrelevantes, pois “o batismo da verdade é algo diverso; é pela renúncia [ao] mundo que o encontramos”.

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 126.

Capítulo: 5- Qual é a “Verdadeira Igreja”?

O Jesus Humano

“Por fim, nessa descrição da vida de Cristo e de sua paixão, o ensinamento ortodoxo oferece meios de interpretar elementos fundamentais da experiência humana. Ao rejeitar a visão gnóstica de que Jesus era um ser espiritual, a ortodoxia insiste em que ele, como o resto da humanidade, nasceu, viveu com uma família, sentiu fome e cansaço, comeu e bebeu vinho, sofreu e morreu. Reiteram ainda que ele ressuscitou como um ser corpóreo. Aqui, mais uma vez, como vimos, a tradição ortodoxa implicitamente afirma que a experiência da materialidade do ser é o fato central da vida humana. O que fazemos fisicamente – comer e beber, ter vida sexual ou evitá-la, preservar a vida ou renunciar a ela -, todos são elementos vitais para nosso desenvolvimento religioso. Mas os gnósticos que consideram a parte essencial de cada um de nós como o “espírito interno” rejeitam essa experiência física, agradável ou dolorosa, encarando-a como um aturdimento da realidade espiritual- na verdade, uma ilusão. Portanto, não é surpreendente que inúmeras pessoas identifiquem-se mais com os ensinamentos ortodoxos do que com o “espírito incorpóreo” da tradição gnóstica. Não apenas os mártires, mas todos os cristãos que sofreram ao longo de 2 mil anos, que temeram a morte e morreram, sentem sua experiência legitimada na história do Jesus humano.”

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 115.

Capítulo: 4- A Paixão de Cristo e a Perseguição aos Cristãos.

Posicionamento dos Gnósticos Sobre o Martírio

“Que posicionamentos os gnósticos assumiram diante do martírio, e em que bases? Os textos de Nag Hammadi mostram que suas opiniões divergiam muitíssimo. Alguns o defendiam; outros o repudiavam por princípio. Seguidores de Valentino tinham uma posição mediadora entre os dois extremos. Mas um fato é claro: em cada caso, a atitude em relação ao martírio correspondia à interpretação do sofrimento e da morte de Cristo.

(…) enquanto alguns gnósticos afirmam a crença na paixão de Cristo e expressam entusiasmo pelo martírio, outros negam essa realidade e criticam esse entusiasmo. O Testemunho da Verdade declara que os entusiastas do martírio não sabem “quem é Cristo”.

(…) o martírio assegura a salvação: se fosse assim tão simples, diz, qualquer pessoa confessaria sua fé em Cristo e seria salva! Aqueles que vivem com essas ilusões

…são mártires [vazios], já que testemunham só [a] si mesmos. (…) Quando são “aperfeiçoados” em virtude da morte sob (martírio), eles pensam: “Se nos entregamos à morte pelo bem do Nome, seremos salvos.” Essas questões não se sucedem dessa forma. (…) Eles não têm a Palavra que oferece [vida].”

Esse autor gnóstico critica pontos de vista específicos do martirio familiares às fontes ortodoxas. Primeiro, censura a convicção de que a morte sob martírio oferece perdão para os pecados, uma visão expressa, por exemplo, no relato ortodoxo do martírio de Policarpo “Ao sofrer durante uma hora ele obteve a vida eterna.” Tertuliano também declarou que desejava sofrer “para obter total perdão de Deus, so dar em troca seu sangue”. Segundo, o autor ridiculariza os teólogos ortodoxos que, como Inácio e Tertuliano, concebem o martírio como uma oferenda a Deus e pensam que Deus deseja o “sacrificio humano”: essa crença converte Deus em um canibal. Terceiro, ataca aqueles que acreditam que o martírio assegura a ressurreição. Rústico, o juiz romano perguntou a Justino poucos momentos antes de ordenar sua execução: “Ouça, você é considerado um homem culto (…) você supõe que ascenderá ao céu?” Justino respondeu: “Eu não suponho, ao contrário, tenho certeza e estou completamente persuadido disso.” Mas o Testemunho da Verdade assinala que esses cristãos estavam apenas “destruindo-se” enganavam-se ao pensar que Cristo compartilhava a mortalidade deles, quando, na verdade, em razão de seu poder divino, era imune ao sofrimento e à morte:

O Filho do Homem [é] um ser imortal, [sendo] imune à transitoriedade. (…) ele desceu ao mundo dos mortos e realizou feitos poderosos. Ressuscitou os mortos (…) e também eliminou suas deficiências humanas e, assim, o manco, o paralítico e o mudo, (e) o possuído pelo demônio ficaram curados. (…) Por essa razão ele [destruiu] sua carne na [cruz] de onde [pendia]. *(Testemunho da Verdade 30.18-20; 32.22-33.11, em NHL 408)

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 102-105.

Capítulo: 4- A Paixão de Cristo e a Perseguição aos Cristãos.