“Que posicionamentos os gnósticos assumiram diante do martírio, e em que bases? Os textos de Nag Hammadi mostram que suas opiniões divergiam muitíssimo. Alguns o defendiam; outros o repudiavam por princípio. Seguidores de Valentino tinham uma posição mediadora entre os dois extremos. Mas um fato é claro: em cada caso, a atitude em relação ao martírio correspondia à interpretação do sofrimento e da morte de Cristo.
(…) enquanto alguns gnósticos afirmam a crença na paixão de Cristo e expressam entusiasmo pelo martírio, outros negam essa realidade e criticam esse entusiasmo. O Testemunho da Verdade declara que os entusiastas do martírio não sabem “quem é Cristo”.
(…) o martírio assegura a salvação: se fosse assim tão simples, diz, qualquer pessoa confessaria sua fé em Cristo e seria salva! Aqueles que vivem com essas ilusões
…são mártires [vazios], já que testemunham só [a] si mesmos. (…) Quando são “aperfeiçoados” em virtude da morte sob (martírio), eles pensam: “Se nos entregamos à morte pelo bem do Nome, seremos salvos.” Essas questões não se sucedem dessa forma. (…) Eles não têm a Palavra que oferece [vida].”
Esse autor gnóstico critica pontos de vista específicos do martirio familiares às fontes ortodoxas. Primeiro, censura a convicção de que a morte sob martírio oferece perdão para os pecados, uma visão expressa, por exemplo, no relato ortodoxo do martírio de Policarpo “Ao sofrer durante uma hora ele obteve a vida eterna.” Tertuliano também declarou que desejava sofrer “para obter total perdão de Deus, so dar em troca seu sangue”. Segundo, o autor ridiculariza os teólogos ortodoxos que, como Inácio e Tertuliano, concebem o martírio como uma oferenda a Deus e pensam que Deus deseja o “sacrificio humano”: essa crença converte Deus em um canibal. Terceiro, ataca aqueles que acreditam que o martírio assegura a ressurreição. Rústico, o juiz romano perguntou a Justino poucos momentos antes de ordenar sua execução: “Ouça, você é considerado um homem culto (…) você supõe que ascenderá ao céu?” Justino respondeu: “Eu não suponho, ao contrário, tenho certeza e estou completamente persuadido disso.” Mas o Testemunho da Verdade assinala que esses cristãos estavam apenas “destruindo-se” enganavam-se ao pensar que Cristo compartilhava a mortalidade deles, quando, na verdade, em razão de seu poder divino, era imune ao sofrimento e à morte:
O Filho do Homem [é] um ser imortal, [sendo] imune à transitoriedade. (…) ele desceu ao mundo dos mortos e realizou feitos poderosos. Ressuscitou os mortos (…) e também eliminou suas deficiências humanas e, assim, o manco, o paralítico e o mudo, (e) o possuído pelo demônio ficaram curados. (…) Por essa razão ele [destruiu] sua carne na [cruz] de onde [pendia]. *(Testemunho da Verdade 30.18-20; 32.22-33.11, em NHL 408)
PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 102-105.
Capítulo: 4- A Paixão de Cristo e a Perseguição aos Cristãos.