Condenando como Blasfêmia

“(…) Essa declaração conclui sua crítica detalhada à interpretação
de Valentino sobre a paixão de Cristo. Condenando como blasfêmia sua alegação de que só a natureza humana de Cristo sofreu, ao passo que sua natureza divina transcendeu o sofrimento, Irineu insiste em que

o mesmo ser que foi preso e sofreu, e verteu seu sangue por nós, era ao mesmo tempo Cristo e o filho de Deus (…) e ele tornou-se o Salvador daqueles que morreriam por terem co nfessado sua fé nele. *(Ibid., 3.16.9-3.18.4. Ênfase acrescentada.)

Na verdade, acrescenta, “se alguém supõe que existam duas naturezas em Cristo”, a que sofreu é certamente superior àquela que escapou ao sofrimento, tendo sido poupada da injúria e do insulto.

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 98-99.

Capítulo: 4- A Paixão de Cristo e a Perseguição aos Cristãos.

Julgamento Cristão

“Incumbidos do desagradável dever de ordenar execuções por descumprimento das normas vigentes, os funcionários romanos quase sempre tentavam persuadir o acusado a preservar sua vida. Segundo relatos contemporâneos (ca.
165), depois que o idoso e reverenciado bispo Policarpo de Esmirna, na Ásia Menor, foi preso pela polícia,

…o governador tentou persuadi-lo a renegar suas convicções dizendo: “Respeito sua idade”, e outras coisas similares que eles usualmente dizem; “Jure pelo espírito do imperador. Redima-se. Diga ‘Abaixo os ateus!”‘ Policarpo, com uma expressão solene, olhou para a multidão de pagãos sem lei presente ao estádio (…) e disse: “Abaixo os ateus!”O governador persistiu e falou: “Jure e eu o deixarei partir. Amaldiçoe Cristo!” Mas Policarpo respondeu:-”Durante 86 anos fui seu servo e Ele nunca me causo mal (…) Se o senhor se ilude que jurarei pelo espírito do imperador, como pediu,e se finge não saber quem eu sou, ouça e lhe direi simplesmente: Eu sou cristão.” *(“Martírio de São Policarpo” 9-10, em MÁRTIRES CRISTÃOS, 9-11. Ênfase acrescentada)

(…)

Esse comportamento provocou o desprezo do estóico imperador Marco Aurélio, que considerava os cristãos uns exibicionistas mórbidos e desencaminhados. Atualmente, muitas pessoas podem concordar com esse julgamento, ou tratar os mártires como masoquistas neuróticos. Contudo, para os judeus e os cristãos nos séculos I e II, o termo tinha uma conotação diferente: martus significava em grego “testemunha”. No Império Romano, como em muitos países do mundo atual, membros de alguns grupos religiosos caem sob suspeita dos governos como organizações que promovem atividades criminosas ou traiçoeiras. As pessoas que, a exemplo de Justino, ousavam protestar publicamente contra o tratamento injusto conferido aos cristãos nos tribunais, convertiam-se em alvos possíveis de ação policial. Aqueles que se viam nessa situação à época, como agora, a escolha era simples: pronunciar-se arriscando serem presos, torturados, submetidos a um julgamento falso, além de exílio ou morte, ou calar-se para preservar a vida. Seus companheiros de crença reverenciavam os que falavam, chamando-os de “confessores”, e respeitavam só os que eram condenados à morte como “testemunhas” (mártires).

Mas nem todos os cristãos confessavam. Muitos, no momento da decisão, escolhiam a opção oposta. Alguns consideravam o martírio uma tolice, uma perda de uma vida humana e, assim, contrário ao desejo de Deus. Argumentavam que “Cristo, ao morrer por nós, foi executado para que não tivéssemos o mesmo destino”.”

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 93.

Capítulo: 4- A Paixão de Cristo e a Perseguição aos Cristãos.

A Paixão de Cristo e a Perseguição

Existe um fato no qual quase todos os relatos acerca de Jesus de Nazaré, escritos por pessoas hostis ou devotadas a ele, concordam: que por ordem do procurador romano da Judéia, Pôncio Pilatos, ele foi condenado e crucificado (ca. 30). Tácito, o aristocrático historiador romano (ca. 55-115):

…designou como réus e puniu com extrema crueldade uma classe de pessoas detestadas por seus vícios, chamada pela multidão de cristãos. Cristo, que lhes atribuiu o nome, foi condenado à morte no reino de Tibério, por sentença do procurador Pôncio Pilatos, e a superstição maligna foi reprimida por algum tempo, mas eclodiu mais uma vez, não apenas na Judéia, o berço da enfermidade, mas também na capital, onde tudo de horrível ou vergonhoso no mundo reunia-se e convertia-se no assunto da moda. *(1. Tácito, Annals 15.44.2-8.)

(…) se as fontes possuem um consenso em relação aos fatos básicos da execução de Jesus, os cristãos discordam radicalmente de sua interpretação. Um texto gnóstico de Nag Hammadi o Apocalipse de Pedro, descreve uma versão totalmente diferente âa crucificação.”

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 79-81.

Capítulo: 4- A Paixão de Cristo e a Perseguição aos Cristãos.

Autoridade Espiritual

“(…)no fim do século II, quando os ortodoxos insistiam em “um Deus”, validaram, ao mesmo tempo, o sistema de governo no qual a igreja era governada por “um bispo”. (…) Quando os cristãos ortodoxos e os gnósticos discutiam a natureza de Deus, estavam ao mesmo tempo discutindo
a questão da autoridade espiritual.

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 36.

Capítulo: 2- “Um Deus, Um Bispo”: A Política do Monoteísmo.

Controvérsia sobre a Ressurreição

“Como ninguém nas últimas gerações pode ter acesso a Cristo como os apóstolos tiveram, durante sua vida e ressurreição, cada crente deve procurar a autoridade na igreja por eles fundada em Roma e nos bispos.
Alguns cristãos gnósticos discordaram.

O Cristo ressuscitado explica a Pedro que aqueles que “se autodenominam bispos e também diáconos, como se tivessem recebido sua autoridade de Des”, são, na realdidade “canais secos” Embora “não compreendam o mistério”, vangloriam-se de que apenas eles possuem “o mistério da verdade“.  O autor acusa-os de má, interpretação do ensinamento dos apóstolos e, por isso, de terem estabelecido uma “imitação de igreja” no lugar de uma verdadeira “irmandade” cristã.

(…) Mas, para eles, o ensinamento da igreja, e dos funcionários da igreja, jamais teria a autoridade definitiva atribuída pelos cristãos ortodoxos Diziam, dos que receberam gnosis, que foram muito além do ensinamento da igreja e transcenderam sua autoridade hierárquica.

Portanto, a controvérsia sobre a ressurreição provou-se crítica na transformação do movimento cristão em instituição religiosa. Todos os cristãos concordam, em princípio, que apenas o próprio Cristo – ou Deus – é a fonte definitiva da autoridade espiritual. Mas a questão imediata, é claro, era prática: quem, no presente, administra essa autoridade?

Valentino e seus seguidores responderam: quem quer que tenha contato pessoal, direto, com “Aquele que vive”. Argumentaram que apenas a própria experiência oferece o critério definitivo da verdade, tendo precedência sobre todos os testemunhos indiretos e toda a tradição – até mesmo a tradição gnóstica!

PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 26-27.

Capítulo: 1- A Controvérsia Sobre a Ressurreição de Cristo: Acontecimento Histórico ou Símbolo?

Eu Sou o Conhecimento da Verdade

“Como poderia, po exemplo, um cristão no século II escrever o Livro Secreto de João? Podemos imaginar o autor na situação que atribui a João no início do livro: perturbado por dúvidas, começa a refletir sobre o significado da missão e do destino de Jesus. Durante esse questionamento interior, as respostas podem ocorrer de forma espontânea em sua mente; padrões mutantes de imagens podem aparecer. Quem compreende esse processo, não nos termos da psicologia moderna como atividade da imaginação ou do inconsciente, mas em termos religiosos, pode vivenciar essas formas de comunicação espiritual com Cristo. Ao ver sua própria comunicação com Cristo como continuação do que os discípulos desfrutaram, o autor, quando expõe o “diálogo” em forma literária, consegue lhe dar o papel dos que questionam. Poucos entre seus contemporâneos – exceto os ortodoxos, a quem considera homens de “mentalidade literal”- o acusariam de tê-lo forjado; ao contrário, os títulos desses trabalhos indicam que foram escritos “no espírito de” João, Maria Madalena, Filipe ou Pedro.

O título do Evangelho de Maria sugere que a revelação vem da comunicação direta e íntima com o Salvador. A insinuação de um relacionamento erótico entre Maria Madalena e ele pode indicar uma reivindicação de comunhão mística; em toda a história, os místicos de muitas tradições escolheram metáforas sexuais para descrever suas experiências. Os títulos do Evangelho de Tomé e do Livro de Tomé, o Contendor (atribuído ao “irmão gêmeo” de Jesus) podem sugerir que “você, o leitor, é o irmão gêmeo de Jesus”. Quem compreender esses livros descobrirá, como Tomé, que Jesus é seu “gêmeo”, seu “outro eu” espiritual. As palavras de Jesus a Tomé, então, são dirigidas ao leitor:

Como foi dito que você é meu irmão gêmeo e verdadeiro companheiro, examine a si mesmo para que possa entender quem você é(…) Eu sou o conhecimento da verdade.
Então, enquanto me acompanha, embora não possa compreender (isso), você já tomou conhecimento e será chamado ‘aquele que conhece a si mesmo’. Porque quem não conhece a si mesmo não conhece nada, masaquele que conhece a si mesmo atingiu, ao mesmo tempo,o conheci- mento sobre a profundeza de tudo.”*

*Livro de Tomé, o Contendor 1,38.7-18, em NHL 189.

PAGELS, Elaine. Os Evangélhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 19-20.

Capítulo: 1- A Controvérsia Sobre a Ressurreição de Cristo: Acontecimento Histórico ou Símbolo?

Concepção Literal da Ressurreição

“Mas os cristãos gnósticos rejeitaram a teoria de Lucas. Alguns gnósticos chamaram a concepção literal da ressureição de “fé dos tolos”. A ressurreição, insistiram, não era um evento único no passado: ao contrário, simbolizava como a presença de Cristo poderia ser vivenciada no presente. O que importava não era a visão literal, e sim a espiritual.

(…)

Mas o verdadeiro discípulo pode nunca ter visto o Jesus terrestre, por ter nascido na época errada, como disse Paulo de si mesmo. Entretanto, essa deficiência física pode tornar-se uma vantagem espiritual: essas pessoas, como Paulo, podem encontrar Cristo primeiro no nível da vivência interna.”

PAGELS, Elaine. Os Evangélhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 10-11.

Capítulo: 1- A Controvérsia Sobre a Ressurreição de Cristo: Acontecimento Histórico ou Símbolo?

Autoridade Cósmica

“Os ortodoxos destacam o relato de Mateus, segundo o qual o Cristo ressuscitado anunciou aos “11” que sua própria autoridade tinha agora atingido proporções cósmicas: “Toda a autoridade sobre o céu e a Terra me foi entregue.

(…)embora as visões, sonhos e transes extáticos manifestem vestígios da presença espiritual de Jesus, a experiência dos 12 apóstolos era totalmente diferente.

O que quer que pensemos da historicidade do relato ortodoxo, podemos admirar sua ingenuidade. Essa teoria – de que toda autoridade procede da experiência do Cristo ressuscitado por determinados apóstolos, uma experiência agora para sempre concluída – possui grandes implicações para a estrutura política da comunidade. Primeiro, como aponta o estudioso alemão Karl holl, restringe o círculo de liderança  a um pequeno grupo de pessoas cujos membros estão em posição de autoridade incontestável. Segundo, sugere que apenas os apóstolos têm direito a ordenar fututos líderes como sucessores. Os cristãos do século II usaram relato de Lucas para situar o trabalho de base no estabelecimento de cadeias restritas e específicas de comando para todasas gerações futuras de cristãos. Qualquer líder potencial da comunidade deveria atribuir ou reivindicar a origem da autoridade dos mesmos apóstolos. No entanto, segundo a visão ortodoxa, ninguém pode jamais demandar autoridade semelhante – e menos ainda questioná-la.

(…)

Essa teoria atingiu um sucesso extraordinário: por quase 2 mil anos os cristãos ortodoxos aceitaram a visão de que apenas os apóstolos possuíam autoridade religiosa definitiva, e apenas padres e bispos são seus herdeiros legítimos e buscam sua ordenação pela mesma sucessão apostólica.”

PAGELS, Elaine. Os Evangélhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 8-10.

Capítulo: 1- A Controvérsia Sobre a Ressurreição de Cristo: Acontecimento Histórico ou Símbolo?

JESUS CRISTO Levantou do Túmulo

“Jesus Cristo levantou do túmulo.” Essa proclamação deu início à igreja cristã. Talvez esse seja o elemento fundamental da fé cristã; e com certeza é o mais radical. Outras religiões celebram ciclos de nascimento e morte: o cristianismo insiste que em um momento histórico único o ciclo foi revertido e um homem morto voltou à vida!

(…)

No entanto, certos cristãos – a quem cham de hereges – discordam. Sem negar a ressurreição, rejeitam a interpretação literal; alguns acham “extremamente revoltante, repugnante e impossível”. Os cristãos gnósticos interpretam a ressurreição de várias maneiras. Quem experimenta a ressurreição, segundo alguns, não se depara com Jesus em carne e osso de volta à vida; ao contrário, encontra Cristo no nível espiritual. Isso pode ocorrer em sonhos, no transe extático, em visões, ou em momentos de iluminação espiritual. Contudo, os ortodoxos condenam todas essas interpretações; Tertuliano declara que quem quer que negue a ressurreição da carne é herege, não cristão.

(…)

Entretanto, outras histórias, diretamente justapostas a essas, sugerem visões diferentes da ressurreição. Lucas e Marcos rela-
tam a aparição de Jesus “de outra forma” – não na forma anterior na Terra – a dois discípulos enquanto caminhavam na estrada para Emaús. Lucas diz que os discípulos, profundamente perturbados com a morte de Jesus, falaram com um estranho por várias horas. Convidaram-no para jantar; e quando ele sentou com eles para abençoar o pão, subitamente reconheceram nele Jesus. Nesse momento, “ele ficou invisível diante deles”. João conta, também, uma história bastante diferente pouco antes da história do “incrédulo Tomé”: Maria Madalena, chorando por Jesus junto ao túmulo, vê um homem a quem toma como jardineiro. Quando ele diz seu nome, ela reconhece a presença de Jesus – porém ele lhe ordena que não o toque.”

PAGELS, Elaine. Os Evangélhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. 1-4.

Capítulo: 1- A Controvérsia Sobre a Ressurreição de Cristo: Acontecimento Histórico ou Símbolo?

Implicaçoes Políticas e Sociais

“(…) questões acerca da natureza de Deus, de Cristo – possuem, ao mesmo tempo, implicaçoes políticas e sociais cruciais para o desenvolvimento do cristianismo como religião institucional. Em termos mais simples, ideias com implicações contrárias a esse desenvolvimento foram rotuladas de “hereges”; e as ideias que as sustentam de forma implícita tornaram-se “ortodoxas”.

PAGELS, Elaine. Os Evangélhos Gnósticos. Editora Objetiva, 1979, pág. XI-XII.

Capítulo: Introdução.