“As aflições e angústias da vontade nesta noite são também imensas. Algumas vezes chegam mesmo a traspassar a alma com a súbita lembrança dos males em que se vê metida, e com a incerteza de seu remédio. Ajunta-se a isto a memória das prosperidades passadas; porque, ordinariamente, as almas que entram nesta noite, já tiveram muitas consolações de Deus e prestaram-lhe grandes serviços. Sentem, portanto, maior dor, vendo-se tão alheias àqueles favores, sem poder mais recuperá-los.
“Eu sou o verão que vejo minha miséria debaixo da vara da indignação do Senhor. Ameaçou-me e levou-me às trevas e não à luz. Não fez senão virar e revirar contra mim a sua mão o dia todo! Fez envelhecer a minha pele e a minha carne, e quebrantou os meus ossos. Edificou (uma cerca) ao redor de mim e cercou-me de fel e trabalho. Colocou-me nas trevas, como os que estão mortos para sempre. Cercou-me de um muro para que não possa sair; tornou pesados os meus grilhões. E ainda que eu clame e rogue, rejeita minha oração. Fechou-me o caminho com pedras de silharia; subverteu as minhas veredas. Pôs contra mim espreitadores; tornou-se para mim qual leão de emboscada. Subverteu meus passos, e quebrantou-me; pôs-me na desolação. Armou o seu arco e pôs-me como alvo à seta. Cravou-me nas entranhas as setas da sua aljava. Tornei-me o escárnio de todo o meu povo, objeto de riso e mofa todo o dia. Encheu-me de amargura, embriagou-me com absinto. Quebrou-me os dentes e alimentou-me de cinza. Da minha alma está desterrada a paz; já não sei o que é felicidade. E eu disse: frustrado e acabado está meu fim, minha pretensão e esperança no Senhor. Lembra-te de minha pobreza e de minha aflição, do absinto e do fel. Eu repassarei estas coisas no meu coração, e minha alma definhará dentro de mim” (Lam 3, 1-20).
É justo, pois, que tenhamos muita pena e compaixão desta alma; tanto mais que, em razão da soledade e desamparo causados por esta tenebrosa noite, se lhe acrescenta o sofrimento de não achar consolo ou arrimo em nenhuma doutrina, nem em diretor espiritual algum.
Como está tão embebida e imersa no sentimento dos males em que conhece com muita evidência suas próprias misérias, parece-lhe que os outros não veem o que ela vê e sente, e assim, por não a compreenderem, falam daquele modo. Daí brota novo sofrimento: imagina que não é aquele o remédio para o seu mal, e na verdade assim é. Até que o Senhor acabe, efetivamente, de purificá-la, do modo que Ele o quer, nenhum remédio ou meio serve nem aproveita para este seu penar. Tanto mais é verdade, quanto a alma menos pode agir neste estado. Está como prisioneira em obscura masmorra, atada de pés e mãos, sem poder mover-se, nem ver coisa alguma, longe de sentir qualquer favor do céu, ou da terra. Assim há de permanecer, até que se humilhe, abrande e purifique o espírito, tornando-se ele tão simples e fino, que possa fazer um com o espírito de Deus, segundo o grau de união de amor que Ele, na Sua misericórdia, quiser conceder-lhe.
Se há de ser, porém, verdadeira purificação, durará alguns anos, por forte que seja. Contudo, no meio deles, há alternativas de consolação, nas quais, por dispensação de Deus, esta contemplação obscura cessa de investir em forma e modo de purificação, para fazê-lo de modo iluminativo e amoroso. A alma, então, como saída daquelas prisões, é posta em recreação de desafogo e liberdade, gozando e sentindo mui suave paz, na intimidade amorosa de Deus, com facilidade e abundância de comunicação espiritual. Isto é indício da saúde que a alma vai cobrando nesta purificação; bem como prenúncio da fartura que espera. Às vezes chega a ser tão grande a consolação, que lhe parece estarem terminadas as suas provações.
E assim a alma, aqui nesta purificação, vê que quer bem a Deus, e daria mil vidas por Ele (o que é bem verdade, porque no meio destes trabalhos as almas amam a Deus com todas as suas forças); contudo, não sente alívio algum, e sim ainda mais sofrimento. Pois, amando-O tanto, e não pondo em outra coisa a sua solicitude senão em Deus, vê-se ao mesmo tempo tão miserável, que não se pode persuadir do amor de Deus por ela, nem de motivo algum, presente ou futuro, para ser d’Ele amada.”
CRUZ, São João da. A noite escura da Alma. Editora Família Católica, 2018, versão Kindle, Posição: 1347-1432.